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sábado, 26 de novembro de 2011

O rio nosso de cada dia


Esse é o Danúbio, não o Capibaribe




O rio nosso de cada dia

Segue o rio Capibaribe lento, quase parando. Já não há capivaras nem índios nas suas margens, nem mansões e velhos sobrados dos senhores de engenho. Mas ele segue, lento, sonolento, o cão raivoso sem dentes e sem rouquidão. De suas margens a cidade anfíbia lega as palafitas, semimortas, não-cidadãs de Recife. Mas o rio segue, quase parando, quase morto. Segue com estrelas de noites enluaradas dentro de suas águas, com sonetos de insones amantes apaixonados por sinhazinhas, quais fantasmas de noites antigas de sonhos desfeitos.
Mais que estrelas e lua o rio segue lavando a cidade, carregando a sujeira para longe, suas garrafas plásticas e isopores bandidos, dejetos da falta de futuro e de civilidade de uma cidade que não é gentil com seus não-cidadãos. O rio segue como um cortejo fúnebre com caixões despedaçados de violência. Pelo menos um baobá assiste esse féretro, sem contar os flamboyants que choram lágrimas de sangue e as acácias com suas pétalas de sol.
Com quantos verões se faz um rio? Com quantos fios de rede se côa um rio?
O rio leva nossos sonhos, nossos encantos, mas deixa a esperança. A verde esperança de sobreviver. A esperança imortal que teimosamente vive no coração de cada um, torcendo por dias melhores. Dias de cidadania, dias civilizatórios. O rio não pode morrer. O rio não pode morrer, pois aos poucos morremos nós também. O rio não pode morrer. Repete o poeta em seus versos tristes, na sua barca quase náufraga, que desliza na lama encalhada de sobreviventes. O poeta navegante, sem gôndola veneziana vê o sol da rua se por sem brilho, ver o ocaso da aurora da rua, vê as pontes que já não unem, a detenção que já não detém, a Rita santa que pede esmola no cais, o Zé de coração mariano que sonha com Otília, o poeta vê também sombras de igrejas seculares com suas paredes descarnadas e acredita ouvir ladainhas de semanas santas remotas. Mas o rio é inexorável, às vezes pára, as vezes encalha, raras vezes transborda, já não causa espanto, já não se veste de musa, não encanta mais, mas segue, segue, pois o rio não pode morrer, ainda há os que sobrevivem dele, como o poeta na sua barcaça errante, em busca do passado, em busca da aurora, em busca do sol, em busca dos antigos e gentis saveiros, em busca do mar, pois todos sonham em ser mar.
Choram sua lama os esgotos no rio, choram as feridas da cidade, pois o que se tornou o Capibaribe senão uma imensa lágrima insossa de sua amante Recife?
Em memória do mestre Alcides Tedesco que agora navega o mar calmo da eternidade, banhado em luz.


Assuero Gomes


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