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terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Os ossos do santo ofício...




Os ossos do santo ofício...

Essa frase muda totalmente de sentido ao dançar de uma simples vírgula. Seria: Os ossos do santo, ofício...ou ainda: Os ossos, santo ofício. Acrescentássemos alguma outra pontuação e mudássemos a ordem das palavras: Os ossos santos do ofício, ou Os santos dos ossos do ofício.
Mas malabarismos lusófonos à parte, uma figura que nunca morreu, embora agora provavelmente nessa nossa dimensão, só nos restem os ossos, e que emerge mais vivo do que nunca das sombras de uma Igreja de catacumbas, retoma seu lugar nos sempre vivos que nunca morrem dentre os sempre mortos que nunca vivem.
D. Helder, o Concílio Vaticano II, a trasladação do seu corpo, a Igreja de Olinda e Recife, o Vaticano, a beatificação do Dom, tantos assuntos interligados pela fé e pela institucionalização dela, que intrincados estão de tal maneira que não se pode abordar um sem tocar no outro.
D. Helder continua vivo, pairando e inspirando ainda muitas pessoas e algumas instituições (?). Sua figura franzina se agiganta de tempos em tempos, ora é o centenário de seu nascimento, ora é o lançamento de um livro sobre sua pessoa ou seus pensamentos, ora até gente “psicografando” (o que me parece um acinte à sua memória e crença cristã), às vezes alguma ONG no exterior, milhares de artigos e textos diversos, ora é alguma instituição que ele fundou ou apoiou que aniversaria, e nestes tempos atuais se prepara o cinquentenário do Concílio Vaticano II. D. Helder vive agora participando do kairós (tempo da graça de Deus), eflúvio da eternidade sobre nosso tempo (kronos).
É inegável a importância e a amplitude que a atuação do Dom na elaboração e no acontecimento Conciliar teve. Um articulador exímio, com uma visão de extrema sensibilidade humana e uma fé quase infantil, soube como um pescoço sutil virar a cabeça coroada (de Pedro, não de Cristo, pois essa já é voltada para o pobre) da Igreja para o olhar dos miseráveis.
Passados 50 longos anos, o que nos teria deixado o Concílio vaticano II além da saudade? Talvez a sensação do que poderíamos ter sido e não fomos. Sabemos que a graça de Deus nos envolve, sua inspiração também, porém não nos invade, sabemos que os homens e as mulheres se movem construindo sua própria história, sabemos que suas instituições, mesmos as inspiradas, estão impregnadas com o bem e o mal inerentes à própria condição humana. Sabemos também que Cristo é o senhor da história, mas que respeita nosso tempo.
Sabendo de tudo isso não conseguimos, no entanto, em pouco mais de uma década, manter vivos os ideais de uma pessoa que tanto amamos e admiramos. Onde está o ânimo de atualizar uma Igreja envelhecida tornando-a pobre e servidora? Onde estão os pobres de D. Helder, agora órfãos?
Está chegando o momento de transferir-se o túmulo de D. Helder, que está no chão da Sé de Olinda. Talvez seus ossos sejam relíquias, talvez no futuro atraiam romarias peregrinas, talvez homens e mulheres gastem muito do tempo (kronos) e dinheiro para tentar uma beatificação romana, talvez se esqueçam para sempre do profeta sacerdote e suas idéias e seu coração imenso voltados para os prediletos de Deus, os paupérrimos filhos deserdados de Adão.
Um olhar sobre a arquidiocese de Olinda e Recife, a qual ele doou seus mais gloriosos anos, gloriosos como serviço incansável e dedicação extrema, onde imolou sua saúde, seu tempo, sua vida, vemos o esforço de um bispo pastor, mas rodeado por movimentos, quase seitas, com que saídos dos calabouços do Santo Ofício: são acorrentados, quase escravizados, são devotos de línguas mortas, são fantasiados templários, são visionários de anjos e arcanjos, como se as crianças de rua que morrem à míngua não bastassem como anjos, são devotos com pedras na cabeça em estranhas romarias, são franciscos e claras medievais fantasiados de Francisco e Clara, são devotos de Maria rainha de um reino de coroas e cetros, são vozes proféticas mudas e indiferentes... às vezes sinto uma imensa compaixão por essa arquidiocese e seu arcebispo, como deverão às vezes sentir-se tão sozinhos, ou seria eu que projeto a saudade dentro de mim e me embota a inspiração?
Onde estás, profeta, pastor e poeta, como já se não ouve mais?

Assuero Gomes
Médico e escritor


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