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sexta-feira, 30 de março de 2012

Entre pães e estrelas

                                                                    A lua de Lisboa




Entre pães e estrelas



Há que se procurar D. Helder buscando ao alto sem descuidar do chão. Há que se pisar com cuidado sobre os pães por ele repartidos entre os pobres, sem descuidar das rimas, como estrelas salpicadas nos seus versos.

Cuidado, pise devagarzinho, para não acordar o mendigo que dorme sob jornais, pois só com muito amor ele permitirá que lhes distribua o pão do trigo que D. Helder plantou e depois colheu e depois moeu no seu sofrimento e compaixão, para torná-lo em pão de partilha.

Cuidado também quando olhares para as estrelas. Não as conte, apenas as cante, pois elas simbolizam corações-poetas de milhares de pobres que já se foram e agora reluzem junto ao seu pastor.

Não procurem D. Helder em cem anos, nem em duzentos, mesmo mil anos, pois embora haja anos chamados de luz, anjos não tem tempo nem passado nem presente nem futuro, são eternos...e se agora contamos a saudade em pedaços de tempos, centenários até, não mais precisamos do tempo, pois ele se eternizou nos nossos corações, na nossa história, na nossa cidade.

Não fiquem tristes nem eufóricos, se nas comemorações que estão por vir, não encontrarem seu espírito. Ele certamente estará fazendo refeição nalguma casa de palafita ou em um dos morros, ou confortando alguém que não encontrou atendimento médico nos hospitais públicos, ou mesmo recolhendo migalhas para alimentar os pombos e pardais.

Há que se procurar o Dom no meio de seu povo, sem mitras e sem báculos, sem pompa, sem pressa, sem holofotes, sem retoques e sem máscaras. Evitem os aglomerados em torno de discursos vazios, pois a única palavra que enche a barriga do pobre é a Palavra de Deus, pois ela é transformadora da realidade, as outras palavras, são as outras... certamente ele não estará aí.

Escutem a voz que suplica um pedaço de pão, escutem o trinado dos pássaros que mesmo desfigurados pelo vôo chegam ao destino sendo pássaros, escutem o matinho da calçada das Fronteiras crescendo, sigam o rastro de moedas deixadas pelo profeta ao raiar do dia para que os pobres dos mais pobres tenham este pedaço de pão, fujam, no entanto, dos doutores medalhados, simpósios e congressos que discutirão a supérflua conjuntura do destino da sombra da batina do bispo ou a ordem de entrada na procissão da celebração solene dos cem anos de uma estátua...ah, como o Dom estará longe disso!

D. Helder está entre os pães e as estrelas. Lá o encontrarão, até mais, encontrarão a si mesmos. Encontrarão seus sonhos adolescentes de mudar o mundo, sua seiva profética de denunciar as injustiças, sua gana adormecida de lutar por um mundo mais justo em favor dos oprimidos. Encontrarão o Dom, acordado nos seus dias e noites ininterruptas de trabalho e oração, cuidando do pobre.

Quando o encontrarem lembrem-se de partilhar o pão e de partilhar as estrelas, pois são feitos da mesma substância, da sua substância, da substância do Dom, que atravessa séculos e se mantêm atual, presente, vivo. Assim e só assim poderemos celebrar, sem envelhecermos o aniversário do dom da vida de um profeta que vive entre nós.





Assuero Gomes

Cristão católico da Arquidiocese de Olinda e Recife

quinta-feira, 29 de março de 2012






Habemus Papam




Um excelente filme que recomendo pela sutileza e delicadeza demosntrada na condução da trama, o conflito psicológico e institucional, a questão da fé e da psicoanálise, a afetividade humana e os compromissos sociais.
Crise existencial.

Em Recife está no cinema da Fundação Joaquim Nabuco.

terça-feira, 27 de março de 2012

Comblin, um ano sem...

Amiga(o),



Comunico que hoje celebramos o primeiro aniversário da morte de José Comblin. Um livro sobre o teólogo está sendo lançado hoje e em anexo mando uma mensagem sobre o assunto. José Comblin é sem dúvida um dos maiores teólogos da época 1960-2000 na América latina. Atuou durante muitos anos ao lado de teólogos como Gustavo Gutiérrez, Jon Sobrino, Juan Luis Segundo, o filósofo Enrique Dussel, Segundo Galilea, Leonardo Boff, o biblista Carlos Mesters e assessorou bispos como Helder Câmara, Leônidas Proaño (Ecuador), José Maria Pires (que estará presente num dos lançamentos do livro, no dia 27 de abril, em Belo Horizonte), Manuel Larrain (Chile) e Luiz Cappio (Barra, Bahia). Hoje pela tarde haverá uma rememoração em Salvador, no Recanto da Transfiguração, no local onde mestre Comblin faleceu. Estão programadas para hoje diversas outras comemorações: na Paraíba haverá um seminário na Universidade Federal de João Pessoa e uma celebração em Santa Fé (Arara), onde o padre está sepultado. Em Santiago de Chile haverá igualmente uma eucaristia, assim como em Barra (Bahia), onde o teólogo morou nos dois últimos anos de sua vida.



Atenciosamente,



Eduardo Hoornaert

Quando partiu escrevi esse artigo ao mestre:








A noite é suave, já podes desamarrar tuas sandálias e descansar teus pés andarilhos, peregrinos, pois a noite veio, Comblin. Suave e mansa a noite veio. Não amedrontou, nem assustou, ela veio serena ao teu encontro, como a brisa no Horeb, conversando contigo como a brisa e Elias.
Tuas sandálias estão cheias de pó. Das estradas do desterro, das estradas dos sertões, de Talca terra chilena, de Riobamba no Equador, dos nordestinos destinos empoeirados de caminhar, das vilas e acampamentos.
Já podes desamarrar teu cinto que te cingiu, liberar teus rins ao repouso, pois agora vais para onde não querias ir, pois por ti, ficarias mais um pouco entre os romeiros peregrinos. Desata teu cinto, desata, pois nada de prende mais entre os homens e as mulheres que não seja o Amor.
Encosta teu cajado junto aos teus livros. Já não precisarás dele, pois teus pés estão pisando nos verdes e seguros campos do Senhor. Enfrentaste com tua lucidez e tua palavra as fardas e baionetas armadas, agora já não há botas nem coturnos, nem arames farpados, nem grades nem opressão, pois o Vento campeia livre nos campos do Pastor.
A noite é suave e belas são as estrelas. Mais belas ainda o são no céu sertão desse imenso arraial chamado Brasil onde escolheste plantar teu coração. No chão de Ibiapina, de Conselheiro, de Cícero, de Austregésilo e de Helder, ah! Quanta sacralidade nesta terra ressequida, quanto adubo misterioso que a torna fértil sem se mostrar, e faz brotar vida das pedras e vocações libertárias onde grassa o espinho do xique-xique e a cerca do egoísmo.
A noite é suave e doces são os vagalumes que trazem nas mãos dos romeiros a luz roubada das estrelas, para alumiar em pequenas candeias, o caminho que vai sendo construído ao teu redor. Podes ainda ouvir os lamentos e os benditos dessas almas que agora choram tua partida, como órfãos de um pai? Podes ainda escutar-lhes as lágrimas, rutilantes, escorrendo pelos caminhos tortuosos da pele marcada pelo sol cáustico e pela dura labuta diária?
Já não tens mais sede de água, nem sede de saber, nem sede de amar, pois estás na Fonte das fontes. Não precisas mais aprender, apenas contemplar a plêiade de irmãos e irmãs que arrebanhaste, diretamente na face de cada um, transfiguradas e belas pela realidade da presença da face do Cristo.
A noite é suave, mas o dia é claro, Comblin. Dizem que os anjos podem escutar a alvorada. Talvez seja esta uma das poucas vantagens que têm sobre nós, mas os poetas e os cegos também o podem, talvez tu já soubesses disso, os teólogos podem ser como os poetas e os cegos que enxergam horizontes entre uma palavra e outra. O teólogo é um poeta de Deus.
A noite é suave Comblin, mas o dia é claro. Deixaste a nossa noite para nos esperar no Dia. Como sempre, nos emprestando luz onde só enxergamos escuridão.
Agora meu amigo e meu irmão, antes que nos sintamos órfãos, antes que nossa lágrima de saudade escorra para esta terra seca, antes que nossos pés ousem descansar, faze uma prece e acende mais uma luz para nós, essa luz do Dia, pois embora a noite possa ser suave o dia é claro e só podemos caminhar enquanto há luz.

Assuero Gomes
Cristão católico leigo da Igreja de Olinda e Recife 


segunda-feira, 26 de março de 2012

Por um pedaço de Pão




Por um pedaço de pão



Por um pedaço de pão crianças morrem. Por um pedaço de pão, um pedaço apenas, uma cidade se consome, doutores dão seu voto e sacerdotes se afogam em crise, por um pedaço de pão, eu vi.

Vi um ancião se iluminar, no seu pedido esmoler, atendido num pedaço de pão.Por um pedaço de pão, vi um pai vendendo a filha e uma nação invadir a outra. Vi entre escombros, a vida ressurgir, por causa de um pedaço de pão. Vi um leproso desnudar a Francisco em troca de um pedaço de pão, e por um pedaço do pedaço deste pão eu vivo.

Por um pedaço de pão se constrói uma comunidade, uma cidade. Do sonho de um pedaço de pão partilhado, vi homens e mulheres, escravos, beberem da liberdade para sempre, por um pedaço de pão, sonharem justiça.

Vi palácios e templos saqueados por um pedaço de pão, ruírem sobre si mesmos. Vi cardeais se escondendo por um pedaço de pão e vi também retirantes irmãos e irmãs nordestinas como eu, em carcaças humanas, caírem ao longo da estrada, por um pedaço de pão.

Vi toda a poesia que há no mundo num pedaço de pão. Vi todo o ódio que há no mundo na falta de um pedaço de pão.

Vi uma refeição de treze pessoas, nela um pedaço de pão e um copo de vinho, e um traidor molhando este pão dividido com o próprio Pão.

Vi a salvação do mundo num pedaço de pão, e a harmonia do cosmos nele habitar escondida. Vi um ser humano transformado em cão faminto, rastejando e mordendo seu semelhante por causa de um pedaço de pão. Vi movimentos e estruturas, construções e demolições, por um pedaço de pão. Vi uma mulher dar-se por um pedaço de pão e seres humanos em lixões escavarem com suas mãos à procura de um pedaço de pão. Ouvi a música dos anjos e de toda a corte celestial num pedaço de pão. Vi um pedaço de pão ser devorado por um imperador hostil, e engasgado, quase morrer por um pedaço de pão.

Vi um revolucionário, percorrer na sua motocicleta, a latina América, plantando pedaços de pães nos campos oprimidos e sonhar o pão na mesa de todos.

Vi profetas cansados se recuperarem por um pedaço de pão e retomarem sua profecia. Vi rainhas guilhotinadas por um pedaço de pão.

Vi um jovem Deus morrer pregado no madeiro e afogado em seu próprio sangue por um pedaço de pão. Vi um império esfacelado por causa de um pedaço de pão. Vi a morte que ceifa vidas onde não há pão repartido.

Vi um jovem Deus ressuscitar num pedaço de pão, e a morte ser vencida, por um pedaço de pão.

Quando nada mais restar, restará guardado no último farnel, na última mochila, no último prato, na última oração, na canção da despedida, no aceno de adeus, restará um pedaço de pão; nele a história de uma vida preservada, nele a salvação da humanidade possibilitada.

Vivi a esperança de ver tanques e baionetas, metralhadoras e algemas, derretidas e refundidas em arados, transformando ossos em pães, sangue em vinho.

Vi um jovem Deus se transubstanciando, sem limites, num pedaço de pão e se ofertando em amor concreto e sólido, como num pedaço de pão, para você e para mim.

Uma Páscoa, partilhada em ternura e pão para todos e todas!



Assuero Gomes

domingo, 25 de março de 2012

Pessach, Páscoa


Uma belíssima apresentação artística que envolve teatro, dança e música.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Lisboa, Lisbon, oh Luz Boa!

Lisboa

Jamais esquecerei o primeiro encanto que me fizeste, a primeira lua que deste, oh bela cidade!

Deixei um pedaço do meu coração em ti, e agora retornará para ti um pedaço do meu corpo e muito do meu sangue.















domingo, 18 de março de 2012

Libertando Jesus das igrejas



Libertando Jesus das igrejas



Talvez os pregos que O pregaram na cruz não tenham imobilizado tanto quanto as instituições O imobilizam hoje. Os que O prenderam na cruz foram perdoados, pois não sabiam o que estavam fazendo, talvez os que O prendem nas igrejas saibam mais, dentro de suas limitações, o que fazem.

Os pregos institucionais, embora invisíveis, imobilizam muito mais que os de ferro, pois estes  O aprisionaram por algumas poucas e terríveis horas, os outros pregos, no entanto, O aprisionam por mais de mil e setecentos anos, e cada vez mais, O impedem de caminhar livre pelas estradas do mundo, para que possa, vestindo as roupas de cada cultura, comendo a comida de cada povo, morando onde o povo está, falando sua língua, se comunicando plenamente e expondo sua boa notícia, uma notícia de libertação, possa reavivar a esperança concreta da realização do reino.

Preso na instituição Jesus geme. Talvez clame, mas a instituição grita, brada e berra mais alto, em seu nome, mas não anuncia sua boa nova, não avisa aos necessitados que o Reino já chegou. O prisioneiro de cravos de ouro e resplendor de prata, sob o jugo de leis e interditos, proibições e ritos de tradições arcaicas, dogmas imutáveis e penitências impostas aos outros, pede para se libertar.

Sociedades religiosas medievais, conventos vazios, prédios imensos e sombrios onde jazem as ‘conquistas’ do passado, fazem sombra aos pobres que sobrevivem nas sombras da civilização.

Já passa da hora de se libertar o Cristo das igrejas, de todas as dominações e confissões, pois lá fora, na planície é onde a vida acontece e onde as respostas são esperadas pelos presos, doentes, coxos, cegos, surdos, emigrantes clandestinos, é lá que os famintos esperam pelo prato e a certeza de não mais ter fome e os sedentos de verem jorrar água em abundância.

O novo há que se mostrar e mudar a vida do mundo velho e cansado, para que os sinais de morte se mudem em vida e vida em abundância.

Precisamos urgentemente retirar a pedra da prisão, assim como foi removida a pedra do túmulo na Páscoa, libertar dos grilhões como Pedro foi libertado, fazer internamente, nas instituições, o que o Senhor fez com seu amigo Lázaro, desatá-lo das amarras e chamá-lo para fora, para que ande com seus próprios pés.

A boa nova de Jesus sempre foi um motivo e razão de esperança para os desesperados. O mundo, mais que nunca não tem respostas para eles. A Palavra precisa ser anunciada, além, muito além das paredes dos templos e de suas grades, precisa romper as barreiras dos preconceitos e limites culturais.

É preciso lhe arrancar os pregos, calçar-lhe as sandálias, vesti-lo com as cores dos povos, para que nos aponte os caminhos coletivos de solidariedade e partilha.

 Libertar Jesus das igrejas é ‘descrucificar’ e libertar os pobres em cada canto de deserto e tornar em jardim suas vidas semeadas na misericórdia.



Assuero Gomes


Cristão católico leigo da

Arquidiocese de Olinda e Recife


sexta-feira, 16 de março de 2012

O Médico






O Médico



O médico há de ser tão hábil com as palavras quanto com o silêncio. Ser prudente como uma mãe que carrega seus filhos no colo ao atravessar uma larga avenida estrangeira. Destreza e perícia devem ser os fios condutores de sua arte e de seu ofício, e lembrar sempre que a palavra corta mais que o bisturi, drena e limpa mais feridas que qualquer ato cirúrgico, e que esta mesma palavra se mal aplicada, pode lesionar ou amputar uma alma para sempre, irremediavelmente.

O médico jamais recebe comissões por seu trabalho, nem mesmo salário, nem abonos ou gratificações, pois sua arte não tem preço. Concede o direito de retribuição a título de honra (honorário), pois é digno e justo. É claro e límpido nas suas ações e condutas, frente à sua família, ao paciente e aos seus familiares, estendendo seu comportamento à toda sociedade. Deve ser suave no trato às pessoas, diligente e equânime. Atencioso e com postura ereta em todo lugar no qual se apresenta, exercendo ou não seu trabalho, pois ele é espelho no qual se reflete a esperança das pessoas, inspiração e aspiração para os jovens, emanando da sua pessoa, conceitos que serão aspergidos por sobre toda classe médica.

Há que ser culto sem ser esnobe, e ter a consciência que, por mais hábil que seja, mais informado, mais competente, será apenas um ser humano ajudando o outro na sua fragilidade. Curar, amenizar o sofrimento, consolar, são atributos de Deus, do qual somos infiéis depositários de uma graça que não merecemos. Um dia o médico, sua esposa ou seu filho estarão recebendo os cuidados de outro médico, isso faz parte da inexorabilidade da vida; por isso, jamais, em momento algum, deve receber alguma compensação por atender outro médico, isso, por si só já é uma honra. Participará com determinação e vontade inquebrantável de todas as lutas justas da sua classe.

Há que ter poesia no seu espírito, pois de que outra maneira suportaria o sofrimento do outro?  Quanto à fé, não se pode compreender um ser humano que vai a um lugar de onde os outros fogem, os umbrais da morte, o vale da dor e das lágrimas, o misterioso limite do suportável, sem ter fé. A fé será seu único alimento em algumas situações e sem ela, certamente o médico perecerá, a não ser que não seja humano, então não seria médico.

Deve levar sempre consigo um lenço limpo, e não idolatrar a tecnologia sedutora, não fumar e se trajar de forma coerente com a pessoa que é. Jamais se embriagar, respeitar as leis de seu coração e o limite de seu corpo. Lembrar que o país no qual nasceu é a extensão de seu corpo, portanto você está inserido carnalmente nele. O médico não é uma pessoa comum. É um formador de opinião e é o ser humano que se lhe é permitido chegar mais perto da alma do outro. O sacerdote, no seu ofício sagrado, chega perto desta íntima e delicada relação com outro, no entanto, dificilmente um fiel se mostrará desnudo a um sacerdote, e muito menos permitirá que este lhe perscrute suas mucosas e suas vísceras.

O médico não decidirá sobre sua conduta, pressionado por quem quer seja, nem por forças ocultas, nem religiosas, nem econômicas, nem políticas. Respirará e transpirará Ética todos os dias de sua vida sobre a Terra, e terá uma atenção especial para com os pobres no seu momento de dor, sempre, pois serão eles que o receberão, quando as glórias humanas tiverem passado e das vaidades restarem apenas umas poucas palavras nalguma lápide esquecida varrida pelo vento do tempo e do esquecimento.



Assuero Gomes


Médico e escritor

domingo, 11 de março de 2012

Entre o tempo e a eternidade





Entre o tempo e a eternidade



Uma vela acesa e o sol. O médico e a medicina. A brisa e o Espírito. A idade e a sabedoria. O fracasso e o gesto de carinho. A morte e a vida. O casulo e o voar da borboleta.

Somos feitos de tempo e de eternidade.

Areia do deserto e areia da ampulheta. Pó e pó.

Somos feitos de encontros e encantos. Somos uma tarde de crepúsculo inserida em todas as auroras. Seríamos uma flor morta inserida em uma das primaveras que virão, não fosse a eternidade. Somos pão e somos carne.

Somos um poço, uma lagoa, dentro de um mar sem fim. Somos um ponto azul mergulhado no infinito do céu. Um grão de trigo que vai ser triturado na boca do faminto. Somos uma prece entre uma dor e uma esperança.

Há uma linha, tão tênue, tão tênue, que separa o poema da noite, no último verso do dia. Nessa linha dependuramos nossos sonhos, nosso tempo, nossa madrugada. Somos crepúsculo e amanhecer do sexto dia, porque no sétimo há a eternidade.

A terra pertence ao tempo, mas sua beleza à eternidade. Vida inserida em vida. O homem e a mulher pertencem ao tempo, mas seu agir à eternidade. As letras pertencem às palavras, que são do tempo, mas a idéia, mãe das palavras, é eterna. Os médicos são como as palavras, mas pertencem ao eterno, pois curam, saram, acalentam, consolam. Serão apenas passageiros do tempo, mas cidadãos da eternidade.

O barco no horizonte é do tempo, mas a beleza e a serenidade que lhe exprimem são da eternidade. O envelhecer, o cansar, os anos, as décadas, são do tempo. A vida, no entanto, é da eternidade, e esta ninguém a tira, ninguém a dar, senão Aquele que é a fonte, que traz a eternidade entre as mãos, que caminha entre os tempos e acorda antes da primeira aurora.

Entre o tempo e a eternidade assim navegamos. Sobre o mar, sob a chuva. Sobre a areia e sob a poeira. Somos proteína e sal, água e vento. Açúcar e veneno. Somos luz que é da eternidade e somos sombra que não é nada.

A medicina é eterna enquanto perdura o cuidar do outro. A medicina é finita quando já não há o outro, quando já não há quem cuide. A medicina é velha quando já não houver a alegria dos acadêmicos nos corredores dos hospitais-escola com a descoberta de um sintoma no paciente estudado, quando já não se souber o nome do professor, quando houver apenas o preço. A medicina morrerá quando já não houver tempo para se escutar o crepitar do entardecer na voz e no murmúrio vesicular do paciente, quando já não houver quem olhe para a lágrima da mãe do enfermo, quando não mais se alegrar nosso coração ao atender um colega ou um seu filho e a antiga honra da escolha não mais significar. Porque honra, dignidade, carinho, cuidado, um olhar, um escutar, são da eternidade.

A medicina sairá do tempo para entrar na morte, quando se receber alguma vantagem por prescrever algum fármaco, ou se indicar algum exame desnecessário por tão vil motivo, ou se enriquecer através da exploração do trabalho do colega.

Antes, muito antes do tempo, há a eternidade. Nela habitava apenas o Altíssimo, o Único na sua infinita Trindade. Por não se conter de amor, chamou a si as criaturas, através da Palavra, e plantou-lhes três grãos: o grão da eternidade, outro grão da liberdade e o mais importante, o grão do amor.

Somos filhos e filhas da eternidade, e o tempo só nos consome devido ao mau uso desses grãos. Com o segundo, sufocamos o terceiro e assim perdemos, por um tempo, o primeiro. Eis assim uma busca incessante que se inicia ao romper da bolsa das águas e jamais cessa, até retornarmos à eternidade, de onde nunca deveríamos ter saído. Somos peregrinos do tempo, caminheiros da eternidade.



Assuero Gomes
assuerogomes@terra.com.br




sexta-feira, 9 de março de 2012

Pai



Pai



Quando ao avançar do tempo, avistamos ao longe nosso ponto de chegada, que é enfim a última partida, e ao cair da tarde, sob um vento sereno, como uma sinfonia de Schubert ainda a esperar sua conclusão, olhamos um pouco para trás e vemos, no nascer do dia das nossas vidas, uma figura que se avoluma, trazida das entranhas das lembranças guardadas, o pai.

Devesse eu, talvez, enaltecer os grandes pais, aqueles que brilharam na vida profissional, nas artes, nas diversas atividades humanas. Aqueles que superaram as dificuldades de uma vida dura e se tornaram grandes empreendedores, galgando sucesso inimaginável. Ou ainda aqueles que se tornaram heróis de uma comunidade ou de uma cidade ou ainda de uma nação, por seu mérito, sua coragem e pela oportunidade vertida pelo acaso na sua vida.

Fosse essa oportunidade, a ideal para descrever os momentos felizes que pais e filhos têm juntos, que são comuns a todos os pais e a todos os filhos, ou mesmo tecer um poema em fios de saudade pelo pai ausente, ou ainda descrever com lágrimas nos olhos a felicidade de quem tem a força e a inspiração de ser um pai adotivo.

Poderia pedir emprestado à teologia sua Palavra e construir um tratado sobre a figura de Deus, que é pai e que cuida amorosamente de suas criaturas desde o primeiro dia do tempo.

Mas hoje, gostaria de lembrar do pai, simplesmente pai. Daquele que em nada se sobressaiu na vida. Aquele que trabalha monotonamente todos os dias, sem grandes perspectivas de mudança de vida. Que enfrenta o transporte precário, as filas para atendimento de saúde, que conta os dias para o final do mês para receber o minguado salário, já todo comprometido, que escuta as queixas da mulher sobre a situação de casa, das brigas dos filhos, do gás que acabou, das contas e mais contas. Daquele que tem até vontade de desistir, mas olha para os filhos e se levanta pela manhã e enfrenta a mesma vida, medíocre segundo os olhos da sociedade. E assim vai dedicando seus momentos, seus pedaços de vida, por mais humilde, enfadonha e monótona que seja, aos seus filhos. E vai sonhar em vê-los formados, em vê-los casados, em vê-los com filhos. Desse sonho, esse pai retira forças, de onde nem mesmo um poeta, ou um profeta ou um filósofo tiraria. Realizar-se a partir da realização dos outros. Dedicar-se em plenitude aos outros.

Talvez, ao fim do dia de sua vida, esteja esquecido nalgum quarto de um hospital público, ou nalgum abrigo geriátrico. Talvez seus filhos tenham tido alguma lembrança terna, ou nem mesmo isso. Talvez outro final mais feliz permitisse a pena do escritor, burlando a realidade, e o achasse realizado ao lado da família.

Passaram para a vida de adultos, os filhos. O pai ao envelhecer retorna ao mundo das crianças, quase um círculo perfeito.

Quando se tornar para ti apenas lembrança, nem pó, nem desejo nem consistência, apenas lembrança, e olhando com os olhos do coração para essa lembrança e a saudade bater, e o teu derradeiro navio aportar, ele estará acenando do convés e, então, verás alguém que esteve sempre do teu lado, fazendo para ti o ofício de Deus.



Assuero Gomes

Pediatra

assuerogomes@terra.com.br




quinta-feira, 8 de março de 2012

Dia da Mulher



                                                                    Dia da Mulher



Dia da mulher não se comemora, pois todos os dias são dias, da mulher, também do homem, das crianças, do ser humano. Aí sim, dia do ser humano, e quem mais humano que a mulher, que no seu dia a dia, possibilita que o dia dos outros aconteça. O dia de seu filho se tiver, do seu companheiro se tiver, do seu cliente, do seu próximo.

O dia do ser humano deve começar com a mulher e nunca findar. Amá-las antes de compreendê-las, com suas nuances misteriosas feitas de magia, dor e prazer. Alegria em sê-la, em tê-la e conviver.

Salve 8 de março, 9, 10, 11, 12......infinitos dias de eternas horas, preciosos minutos de um colar sem fim.



Assuero Gomes.

segunda-feira, 5 de março de 2012

A Arte de Governar





A arte de governar



 A arte de governar consiste em exercer o ofício de jardineiro; este procura harmonizar as diversas formas de vida que brotam da terra, conhecendo profundamente seus segredos e respeitando seus tempos, sabendo que a beleza do jardim consiste na sua diversidade.

O bom jardineiro, embora leve em consideração as cercas, sabe que a primavera não as respeita e que o senhor do jardim faz chover sobre as flores e sobre as ervas daninhas da mesma forma. Embora lhe possa doer o coração, há que podar os ramos no tempo certo, para que a florescência não feneça e desabroche bela em pleno vigor. Há que reparar com carinho o caniço rachado e jamais excluir as plantas mais frágeis, mais desnutridas, sem viço, pelo contrário, estas devem ter sua preferência no cuidar.

Antes de por a mão no solo e nas plantas, o jardineiro tem que estar em paz consigo mesmo. Deve ter amainado suas tempestades interiores, sua aridez de alma e generoso para si próprio, deve fazer brotar com amor, o orvalho da harmonia interna, que rega o corpo e o espírito, e traz a paz na sua forma mais sublime.

O equilíbrio é o princípio e o fim de um bom jardineiro, ou de um bom governante. O equilíbrio vem quando nossa natureza permite admirar e incorporar o adverso, o diferente, e é nessa completude que o temor, pai de toda violência, é afastado, temor este gerado no desconhecimento do outro.

O jardineiro deve ter a paciência de um monge. Deve saber escutar até o crescer da grama. Deve se orientar pelo canto dos pássaros e pela mudança do sopro do vento. Deve amar a cada flor, sabendo que ela é o resultado do equilíbrio harmonioso da raiz, das folhas e até dos espinhos, uns não existem sem os outros. O bom jardineiro deve aguar o solo com as águas dos próprios olhos quando seus rebentos estão sofrendo injúria ou ameaça, deve ser sensível ao infinito às suas necessidades e magnânimo no perdão. Por certo, agindo assim, verá florir seu jardim que resistirá aos rigores do tempo e florirá a cada primavera. Deve lembrar sempre, que o jardim não é seu, e seu ofício é tanto mais nobre quanto mais consciente for de que o Senhor do jardim é o mesmo Senhor das primaveras, e que ele, o jardineiro, está apenas servindo por instantes na parte de terra e do tempo que lhe foi dada.

Na China feudal, o duque de Shao refletiu sobre a arte de governar e enviou estas sábias e belas palavras ao grande imperador Li-Wang, no ano de 845 antes de Cristo:

“Um imperador sabe governar quando os poetas têm liberdade de fazer versos; os atores, de representar; os historiadores de dizer a verdade; os pobres, de rosnar contra os impostos; os estudantes, de aprender suas lições em voz alta; os obreiros, de louvar a habilidade própria e procurar trabalho; o povo, de falar de tudo; os velhos, de por defeitos em todas as coisas.”

Um governante sabe governar quando faz a justiça brotar em cada esquina, frutificada em pão e ternura, e seus ramos darão sombra e abrigo para todos os cidadãos como os pássaros que, trazendo escondido nas suas asas em repouso, o vôo do futuro, fazem seus ninhos nela.

Um jardineiro ama seu jardim como se dependesse dele a primavera e a cor e o perfume das próximas flores escondidas nos botões, e será tão mais feliz quanto mais viçoso e belo o deixará para seu futuro.

Assuero Gomes
assuerogomes@terra.com.br







sábado, 3 de março de 2012

Berggasse 19 - Vienna FREUD

Berggasse 19 - Vienna


Este é o endereço onde Freud trabalhou, morou com sua família durante quase 50 anos (1891-1938) e escreveu suas obras completas. Sua filha Anna Freud, também trabalhava aqui como psicanalista de crianças (1925-1938). A edificação, cuja construção data de 1881, foi doada por Anna e tornou-se o "The Sigmund Freud Museum Vienna", desde 1971. (cf.inf. Página de Freud)




Berggasse 19 - Vienna - Endereço da estação primeira da viagem interior à alma



quinta-feira, 1 de março de 2012

Jesus e Maria de Magdala

                                                                   



Jesus e Maria de Magdala

Muito se falou e se escreveu sobre a questão de um suposto casamento entre Jesus e Maria de Magdala, o qual teria sido escondido durante séculos pela Igreja, e que teria gerado descendência carnal do Galileu.

Há um problema de ordem teológica. Deus pertence à esfera divina, Ele é criador e, portanto, não pertence à criação. A criação e tudo o que ela contém não pertence à esfera divina. A esfera divina é por si mesma isenta de pecado, mal, degradação, decadência, corrupção, o mesmo não acontece com a criação, que misteriosamente foi tocada pelo pecado.

Javé é o Outro absoluto, que basta a si mesmo, porém sendo um Deus-comunidade que existe e coexiste em três pessoas distintas, uníssonas, não se contendo em si por amor, cria o mundo. Mas Ele não pertence ao mundo.

Não se contendo, por amor, novamente, Ele resolve penetrar e fazer parte da criação, em determinado momento da história humana. Como a criação foi contaminada pelo mal, Ele que é bom e donde emana toda bondade e santidade, sem violentar a própria Criação, necessita de uma mulher para se encarnar na história humana. Daí a questão da imaculada conceição de Maria, que obrigatoriamente teria que ser preservada de todo pecado e escolhida na mente e no coração de Deus antes de todos os tempos. Até aí sem novidades. Ora, não teria sentido Jesus sendo Deus e Deus sendo Jesus, Ele coabitar com outro ser humano e procriar, deixando uma descendência carnal, no mesmo nível dos deuses da Grécia e outras religiões orientais, onde a cópula destes deuses com humanas geraram semi-deuses. Devemos lembrar sempre que a cultura e a religião de Jesus é a judaica. Não há a menor possibilidade de promiscuidade, entre Deus e humanos. Deve se ter sempre em mente a delicadeza e a sutileza do texto de Lucas quando da fecundação de Maria onde se diz “O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra”. Nada de cópula divina, nem magia, nem rituais nem cerimônias secretas.

Não sei com que plenitude Jesus tinha a consciência de sua divindade. Se o plano divino era participar de maneira real e concreta da humanidade, para o resgate da idéia inicial com a qual foi concebida pelo Pai, não teria o menor sentido Jesus deixar uma descendência carnal aqui na terra e mesmo que, Ele deixou uma descendência espiritual na qual somos todos chamados a ser seus irmãos e irmãs, através de fazermos a vontade do Pai e incorporar seu corpo e seu sangue ao nosso.

É difícil imaginar Deus-Filho tendo uma relação sexual com Maria Madalena, mesmo que fosse com a nobre intenção de gerar uma nova vida.

Acaso Ele realmente fosse casado com Maria de Magdala, ao morrer na cruz, não teria confiado a sua (nossa) mãe aos cuidados de João, já que a nora estaria apta a ficar na casa cuidando dela. Creio, no entanto, que ela era apaixonada por Ele, mas uma paixão que deve ser analisada e vista com os olhos da cultura semita de dois mil anos atrás. Uma paixão que é traduzida em profunda admiração, gratidão, e sublimada em seguimento aos ideais da pessoa amada. Imaginem que hoje, a cultura do Islã em alguns países, é rígida a tal ponto que uma mulher não mostra a face em público, nem pode conversar com homem algum a não ser do círculo familiar, muito menos tocá-lo. Imaginem há dois mil anos.

Creio que paixões podem ser sublimadas com crescimento de ambos, vejam Clara e Francisco, Luísa e Vicente, Tereza e João da Cruz, e tantos e tantas... Por fim, mesmo com a estrutura masculina da Igreja, esta só foi se formar nos moldes que é hoje, a partir de Constantino no século IV, creio que, sendo Maria  Madalena casada com Jesus, ela a teria acolhido como acolheu a Maria nos seus primórdios, pois devemos lembrar, que mesmo fracos e covardes e de pouca fé, os discípulos não eram homens vis nem mentirosos nem perseguidores de mulheres, pois se assim o fossem de nada valeria seu testemunho.

Assuero Gomes.