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domingo, 15 de abril de 2012

De coisas raras e de outras até banais ...



                                           Photos by David Sôlha




De coisas raras e de outras até banais ...



Serão banais para outros e tão preciosas para nós mesmos, que serão as únicas coisas que nos acompanharão até o crepúsculo, nossas memórias.

Serão paisagens inacessíveis em antigas folhinhas de calendários, serão sabores, aromas e cheiros. Serão pedaços de versos rotos ou pequenos desenhos rabiscados às pressas nos cadernos de dever de casa. Serão momentos que se tornaram com o tempo, tempos de delicadeza, cacos que foram polidos ou desgastados com o passar das manhãs e dos verões, e agora parecem gemas preciosas

Aromas de extratos requintados, de perfumes suaves, guardados em preciosos frascos na prateleira do já senti, nalgum baile de alguma menina arisca ou indiferente, que aflorarão na pele de nossos fantasmas quando menos esperarmos, e nos enlevarão com ternura. Há passeios onde nem passamos, mas que em nosso conto de criança, terão sido castelos e fossos e dragões com belas princesas intransponíveis e nem sempre adormecidas.

Certamente no crepúsculo veremos, com os olhos de se ver por dentro, o dia amanhecer por trás das duas montanhas que pintamos com o verde novo do lápis de cor do primeiro dia de aula daquele ano, ou mesmo ouviremos os passarinhos que colocamos na frente da nuvem branca, e que pareciam tão vivos, que voaram para sempre.

E os sabores? Belos sabores, tão singelos como hoje já não se apresentam mais, preparados em casa, uma simples banana com leite em pó, ou um doce de fim de tarde, um bolo caseiro, ou até mesmo uma pipoca em frente a uma televisão de imagens cinzas e de móvel trabalhado, tão imponente e que nos acompanhou por tantas aventuras e que demoravam uma hora para acender, mas para que a pressa?

O jogo de futebol na rua baldia, a missa no domingo na capela da cruzada, o muro sem grades, baixo, o terraço, as cadeiras de vime, os pedintes no dia certo, na hora certa, que conhecíamos pelo nome. Era tudo tão eterno. Era tudo tão eterno, que jamais pensei que pudesse acabar.

As visitas, as conversas, as preocupações tão frívolas e simples, como os arranhões nos joelhos depois do jogo, e o mercúrio cromo tão vermelho que nos deixava como os Navajos perseguidos pelo mocinho e estampavam ao mesmo tempo a traquinagem e o cuidado materno.

Adoecia-se tão pouco que só me lembro de ter ido ao médico uma única vez engessar o braço e também a um pediatra por um problema de garganta. Era menos doloroso e complicado ser criança.

As pessoas e os sentimentos que evocam, depurados com o tempo, são como relíquias em sacrários medievais. Estão guardados. Estão ocultos. Estão secretos, sagrados. Aspergem lembranças quando são invocados, fazem parte do fardo ou da leveza que somos condenados a carregar como Sísifo ou a voar como Ícaro, até que a luz nos absorva completamente.

O sopro, esse sopro tão tênue que nos transmitem os fantasmas renegados, podem transformar-se em tempestade em vez de brisa, podem assombrar ou enternecer como um espelho, e podem desaparecer consigo mesmo levando nossa imagem e existência com eles. Seremos então livres da nossa memória, mas refém de nossos fantasmas.



Assuero Gomes







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