As noites de Cabíria
Certamente Fellini na noite de
Roma não poderia ter se inspirado melhor. Como num poema, a vida de Cabíria é contada
com delicadeza e sensibilidade. Quem se esquecerá de Giuleta Masina
interpretando de maneira genial, a prostitura que apesar de todos os dissabores
da vida continua acreditando na humanidade, numa vida melhor num futuro menos
cinzento?
Poderia imaginar Cabíria, no auge
dos anos 50, com seus amores noturnos como uma nação latina, quem sabe o nome
não traga à lembrança, algo do Caribe ou da nossa latina América? Cinquenta
anos se passará em 2007 desse relato em celulose,e certamante incólume ao
tempo, Cabíria vagueia nas noites de meu país, que como ela, teve tantos
amantes quantas falsas juras de amor, paixões perdidas em noites quentes e
escuras.
Amante primeira de um general que
lhe prometera felicidade eterna numa cama no paraíso, em vez, algemou-lhe as
mãos e com o açoite lhe roubou a liberdade em calabouços úmidos e amordaçou-lhe
a boca em vez de beijos, e vendou-lhe os olhos em vez de cinema; mais adiante em
sua peregrinação noturna Cabíria deixou-se enlevar-se pela figura de um
personagem de outro filme, um rapaz de dolce vita, que lhe prometendo modernidade
e carros novos, e uma turnê na europa, despojou-lhe da parca poupança que a
duras penas juntara, e foi-se para sempre sem deixar saudades.
A personagem de Fellini tem uma
característica muito especial, que a torna quase lúdica, ela ri de si mesma e
continua acreditando nas pessoas e em Deus. A cena em que procura a solução para sua
vida amorosa através de um milagre, e que foi muito tempo censurada pela
Igreja, é antológica.
Cabíria, continua vivendo, mesmo
destroçado o seu coração, por sobre os cacos de vidro de sua existência, e
desta vez a vemos deslumbrada por um professor, doutor, homem distinto, de
grande erudição. Versado em letras e sociologia, com discurso em todas as
universidades do primeiro mundo. Seduziu nossa heroína, de vida nada fácil.
Impossível homem de tal quilate ter uma conduta que não seja digna. Um
verdadeiro cavalheiro, como um nobre italiano, da corte dos Medici. Ah,
Cabíria, como te deixas enganar pelas aparências...Logo que o culto amante
sentiu ter conquistado definitivamente o coração da mulher, diga-se, o mais
puro de todos os corações dos personagens da película, privatizou sua casa, seu
ônibus, seu posto de saúde, sua energia, sua água e sorrindo sutilmente, como é
o sorriso dos intelectuais, zombava, junto a seus pares da fala errada de
Cabíria, dos seus deslizes gramaticais, da sua pouca cultura européia. Um duro
golpe na vida dela, mas a força dos sobreviventes é algo sobrehumano.
Desiludida, jurou jamais se
apaixonar novamente, jamais abrir seus lábios para homem algum, jamais deixar
se seduzir por quem quer que fosse.
O coração das mulheres é
complexo, profundo e imperscrutável, e acontecendo que Cabíria recebendo cartas
e bilhetes de um rapaz trabalhador, por longo e longo tempo, foi cedendo, foi
esquecendo seu passado de decepções e foi se apaixonando. Esse era diferente,
lhe fazia a corte com sinceridade, era humilde e honesto, prometera-lhe levar
para conhecer a família, era de origem igual a dela. Embora arrasada
financeiramente pelas suas aventuras amorosas anteriores, ela, verdadeira
trabalhadora, conseguiu juntar um pouco de dinheiro, e tendo acertado casamento
e lua-de-mel, vendeu sua única e miserável casa, despediu-se das colegas e
partiu ao encontro de sua viagem definitiva, com seu homem ideal.
O final do filme alguns dos
leitores e leitoras talvez se lembrem. Não ficou em mim a recordação
melancólica do último amante de Cabíria fugindo com a mala com o dinheiro dela,
fugindo cruelmente com sua esperança, mais valiosa que o dinheiro. Ficou em mim
a força da sobrevivente, que nos dá uma lição de vida e de fé. Ergue a cabeça e
vai trabalhar no que lhe restou da vida, na noite da periferia. Cabeça erguida, encontrando motivo para rir e
seguir adiante e sonhar com um fio de luz, na projeção de felicidade numa tela
utópica, antes que o filme apague e se fechem as cortinas.
Assuero Gomes
assuerogomes@terra.com.br