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quarta-feira, 30 de maio de 2012

As noites de Cabíria





As noites de Cabíria



Certamente Fellini na noite de Roma não poderia ter se inspirado melhor. Como num poema, a vida de Cabíria é contada com delicadeza e sensibilidade. Quem se esquecerá de Giuleta Masina interpretando de maneira genial, a prostitura que apesar de todos os dissabores da vida continua acreditando na humanidade, numa vida melhor num futuro menos cinzento?

Poderia imaginar Cabíria, no auge dos anos 50, com seus amores noturnos como uma nação latina, quem sabe o nome não traga à lembrança, algo do Caribe ou da nossa latina América? Cinquenta anos se passará em 2007 desse relato em celulose,e certamante incólume ao tempo, Cabíria vagueia nas noites de meu país, que como ela, teve tantos amantes quantas falsas juras de amor, paixões perdidas em noites quentes e escuras.

Amante primeira de um general que lhe prometera felicidade eterna numa cama no paraíso, em vez, algemou-lhe as mãos e com o açoite lhe roubou a liberdade em calabouços úmidos e amordaçou-lhe a boca em vez de beijos, e vendou-lhe os olhos em vez de cinema; mais adiante em sua peregrinação noturna Cabíria deixou-se enlevar-se pela figura de um personagem de outro filme, um rapaz de dolce vita, que lhe prometendo modernidade e carros novos, e uma turnê na europa, despojou-lhe da parca poupança que a duras penas juntara, e foi-se para sempre sem deixar saudades.

A personagem de Fellini tem uma característica muito especial, que a torna quase lúdica, ela ri de si mesma e continua acreditando nas pessoas e em Deus. A cena em que procura a solução para sua vida amorosa através de um milagre, e que foi muito tempo censurada pela Igreja, é antológica.

Cabíria, continua vivendo, mesmo destroçado o seu coração, por sobre os cacos de vidro de sua existência, e desta vez a vemos deslumbrada por um professor, doutor, homem distinto, de grande erudição. Versado em letras e sociologia, com discurso em todas as universidades do primeiro mundo. Seduziu nossa heroína, de vida nada fácil. Impossível homem de tal quilate ter uma conduta que não seja digna. Um verdadeiro cavalheiro, como um nobre italiano, da corte dos Medici. Ah, Cabíria, como te deixas enganar pelas aparências...Logo que o culto amante sentiu ter conquistado definitivamente o coração da mulher, diga-se, o mais puro de todos os corações dos personagens da película, privatizou sua casa, seu ônibus, seu posto de saúde, sua energia, sua água e sorrindo sutilmente, como é o sorriso dos intelectuais, zombava, junto a seus pares da fala errada de Cabíria, dos seus deslizes gramaticais, da sua pouca cultura européia. Um duro golpe na vida dela, mas a força dos sobreviventes é algo sobrehumano.

Desiludida, jurou jamais se apaixonar novamente, jamais abrir seus lábios para homem algum, jamais deixar se seduzir por quem quer que fosse.

O coração das mulheres é complexo, profundo e imperscrutável, e acontecendo que Cabíria recebendo cartas e bilhetes de um rapaz trabalhador, por longo e longo tempo, foi cedendo, foi esquecendo seu passado de decepções e foi se apaixonando. Esse era diferente, lhe fazia a corte com sinceridade, era humilde e honesto, prometera-lhe levar para conhecer a família, era de origem igual a dela. Embora arrasada financeiramente pelas suas aventuras amorosas anteriores, ela, verdadeira trabalhadora, conseguiu juntar um pouco de dinheiro, e tendo acertado casamento e lua-de-mel, vendeu sua única e miserável casa, despediu-se das colegas e partiu ao encontro de sua viagem definitiva, com seu homem ideal.

O final do filme alguns dos leitores e leitoras talvez se lembrem. Não ficou em mim a recordação melancólica do último amante de Cabíria fugindo com a mala com o dinheiro dela, fugindo cruelmente com sua esperança, mais valiosa que o dinheiro. Ficou em mim a força da sobrevivente, que nos dá uma lição de vida e de fé. Ergue a cabeça e vai trabalhar no que lhe restou da vida, na noite da periferia.  Cabeça erguida, encontrando motivo para rir e seguir adiante e sonhar com um fio de luz, na projeção de felicidade numa tela utópica, antes que o filme apague e se fechem as cortinas.



Assuero Gomes

assuerogomes@terra.com.br

domingo, 27 de maio de 2012

A Igreja e a barca





A Igreja e a barca



Ereta na margem do rio, a igreja, antiga, de madeira construída, guardava toda a história e a tradição do lugar, que empobrecido pela monocultura, criou uma verdadeira zona de miséria. Os pobres proliferavam ao redor da igreja, vivendo da pesca minguada do rio, que a indústria poluiu, sem criar empregos, pois automatizada, dispensou a mão-de-obra já barata, que de explorada passou a excluída.

Aconteceu que, por causa destes desequilíbrios nada naturais, o rio além de corroer as margens, subia cada vez mais. Invadiu os casebres e acabou com a pesca já mirrada. A população não tinha como se salvar. Decidiram então construir uma barca na qual coubesse a todos. A única madeira viável era a da igreja. O velho pároco bradando ameaças do inferno foi contra. Era a casa de Deus, propriedade da Igreja, depositária da tradição. Quem ousasse tocar numa só talisca daquela madeira sagrada seria excomungado por dilapidação.

A água subia. Parecia até que um segundo dilúvio de Noé estava para acontecer. As pessoas se reuniram e tomadas de coragem, que as situações extremas encarregam de providenciar, amarraram o padre à pouca distância e começaram a arrancar as tábuas da salvação. O pároco chorava sentindo-se culpado por não defender com a vida sua igreja. O povo, a bem da verdade, há muito tempo já não freqüentava mais assiduamente as celebrações, pois a fome e as doenças apertando, com o desemprego, não tinham como pensar no etéreo. A barriga vazia e o choro de crianças com fome, são péssimas companhias para a meditação e o louvor.

Madeira por madeira, pregos enferrujados de centenas de anos, muitos cupins sorrateiros. A estrutura eclesial foi sendo desmontada pelo povo, que naquela hora precisava mais de uma barca que de um edifício. O cura exortava os ribeirinhos a pararem com aquele sacrilégio. A água subia. O povo começava a se organizar em comunidade na iminência da catástrofe. Precisavam chegar à outra margem. As águas estavam mais profundas e revoltas. A água começava a banhar os pés do pobre padre, que a estas alturas já rezava o breviário decorada e piedosamente.

Em questão de horas, a igreja estava praticamente toda desmontada e um esboço de embarcação estava surgindo, como num milagre. Os pobres estavam transformando a igreja em barca. “Um dia, muito antigamente, a Igreja já foi uma barca”, lembrou um ancião “e os padres já foram pescadores”. O ancião era a memória do povo. Na construção da barca todos trabalharam com afinco. A água subia galopante. Talvez não desse tempo. O padre iniciou o terço. Estava aflito. A barca se completava com o esforço sobre-humano de cada um.

As paredes, o forro, os bancos, o altar, o confessionário, o genuflexório, tudo, tudo, foi transformado na barca. A barca da salvação dos pobres. A barca que deveria chegar à outra margem, transportando-os, em segurança, por sobre águas turbulentas e profundas. Com água nos joelhos, estava quase pronta. As crianças forma colocadas a bordo, em primeiro. Desamarraram o pároco, que vendo e sentido a água subindo por sobre sua batina, deu graças a Deus pela barca e correu como pode para nela adentrar.

Estando pronta ao mesmo tempo em que as águas revoltas do rio varriam os alicerces da antiga igreja e dos casebres, todos se acomodaram e puderam iniciar mais esta travessia nas suas vidas, e nunca, nunca mesmo, aquela igreja, agora transformada, salvou tanta gente.



Assuero Gomes.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

A Trindade, o relâmpago e a criança...









A Trindade, o relâmpago e a criança...





Lá fora uma tempestade, com um belo e terrível espetáculo da natureza. Raios e trovões ribombavam num céu de chumbo. A floresta acendia seu verde a cada raio e a chuva, em tempestade, lavava a montanha. O vento a tudo revolvia, vento forte, impetuoso.

Na pousada, em busca de abrigo, uma família adentrou. Um homem sábio, que ali estava observando estes magníficos fenômenos naturais, refletia sobre a grandiosidade de Deus e sua criação.

Um ser supremo, tão grande e poderoso, que num minúsculo planeta como o nosso, perdido entre bilhões de anos-luz e estrelas sem fim, impressionava suas criaturas com tal demonstração de poder, e as fazia sentirem-se maravilhadas e pequeninas, quando até mesmos os descrentes se rendem à grandiosidade da natureza.

Ali, ao lado, bem pertinho, o jovem casal e seu filhinho de poucos meses de idade. Frágil criança, que incomodada chorava. O pai atento se ajoelha para trocar-lhe a fralda, num gesto espontâneo e singelo de imenso carinho. Uma criança que traz dentro dela todo o gérmen da criação, traz toda a fragilidade e a beleza da vida, cultivada e sobrevivida entre cataclismos, migrações, eras glaciais, dinossauros, guerras, catástrofes, gerações e gerações.

O ancião vislumbra, como um raio, suave raio de luz, suave sopro do Espírito, o mistério da Trindade. Ele sente o mais louco do mais louco gesto de amor de Deus para com os humanos, a sua encarnação numa criança, aquela de Belém, que é sinal e presença em todas as crianças humanas. Ele vê no gesto do pai, o cuidado de infinito amor, que Deus tem por nós, criaturas, apesar de todas as nossas fraquezas e especialmente por causa de nossas fraquezas. A mãe, que segurava seu filho num abraço, como a protegê-lo das intempéries, instintivamente, mostrava ao sábio, o lado materno de Deus, ali, tão real, tão visível, e tão humano, como aquela jovem mãe num sopro de carinho e proteção.

Doce mistério da Trindade que se revela aos corações misericordiosos, despidos de vaidade e preconceitos, despidos de dogmas e verdades absolutas.

Aos poucos a tempestade se acalma, o sol timidamente ilumina com alguns raios de luz a floresta que agora mais viva, retribui com mais verde a mais música. A criança se acalma e se aninha nos braços amorosos da mãe. O pai beija a ambas e observa que o tempo melhorou. Preparam-se para continuar sua jornada.

O sábio esboça um sorriso para aquela família humana, que lhe propiciara um profundo momento de fé e sabedoria, talvez mais importante que muitos e muitos livros que lera durante sua longa vida e as horas que passara tentando entender e compreender o inefável mistério da Trindade. Estava convencido até de que tal mistério é como o sol, quanto mais nos aproximamos dele mais cego ficamos.

Dentro dele a tempestade se acalmou, o coração e a mente serenos, em harmonia com toda natureza, compreendeu então que Deus na sua unidade-trina habita o coração de cada ser humano, e faz nele sua morada definitiva. Não é hóspede, nem passageiro, nem visitante, é habitante. Compreendeu que qualquer ser humano, em qualquer situação de vida, no alto do precipício ou nas profundezas do abismo, no gozo da paz celestial ou na amargura de um sofrimento medonho é templo irremovível da Trindade, e não há força nesta terra nem nos céus, nem religião nem doutrina, que possa separar o ser humano do amor de Deus.

Para padre Arnaldo Cabral, por sua sabedoria e juventude teológica.

Assuero Gomes – do grupo cristão O Dom da Partilha

domingo, 20 de maio de 2012

Jesus libertando você das igrejas...




Jesus






Jesus libertando você das igrejas...



Quando você se sentir oprimido por causa do peso da estrutura religiosa à qual você pertence, quando se sentir culpado, de tal maneira que o ar fique pesado para entrar e sair dos seus pulmões e o peso da culpa que fizeram recair sobre você ficar insuportável, quando você não conseguir cumprir com todas as obrigações impostas, quando a igreja for muito grande e você se sentir muito pequeno, lembre-se de algumas verdades:

Jesus não veio condenar ninguém, Jesus não fundou nenhuma religião, Jesus não pediu que lhe construíssem nenhum templo, não escolheu nenhuma cidade nem lugar como sagrado, não discriminou ninguém, não aceitou oferendas nem as pediu.

Lembre-se sempre do que Ele ensinou, dentre muitas coisas: o verdadeiro lugar de adoração é o seu coração, o verdadeiro culto agradável ao Pai é atender ao necessitado, o Templo que Ele construiu foi seu próprio corpo ressuscitado, todos são filhos de Deus, sem exceção; nunca chame ninguém de mestre, pois só um é o Mestre, não chame ninguém de senhor, pois o próprio Deus é chamado de papai.

Os homens e as mulheres constroem seus sistemas religiosos institucionais de tal maneira que você pensa que é a vontade de Deus e, assim pensando, você é oprimido muitas vezes por esse sistema e ainda assim é você quem o sustenta tanto psicológica, espiritual e financeiramente. O sistema é construído à imagem e semelhança dos que governam esse mundo, mas no modelo que Jesus nos ensinou é o inverso que deve acontecer, quem é o maior, que seja o menor, quem quer ser servido que sirva, os últimos serão os primeiros, os mansos e humildes herdarão a Terra, os famintos serão saciados e os ricos despedidos de mãos vazias.

Liberte-se, pois só assim poderá acompanhar Jesus lado a lado e sentir a verdadeira grandeza de um Deus que caminha na poeira dos pés dos deserdados, que se admira com a veste dos lírios do campo e se alegra com o partir do pão. Uma grandeza resplandecente na humildade.

Transforme a instituição que você frequenta em comunidade fraterna de vivência de fé. Nunca tema autoridade nenhuma, pois os filhos são herdeiros e uma vez incorporados na partilha do pão, já são uma só carne e um só sangue.

Lembre-se que quanto mais você se tornar obediente aos ditames do mundo, quanto mais complacente com as injustiças do mundo, quanto mais enquadrado na imutável hierarquia dos sistemas, mais preso estará e assim, mais distante de Jesus, do caminhar livre.

As igrejas tentam aprisionar Jesus e assim aprisionam você. Libertar Jesus das igrejas, na verdade é libertar você das igrejas.

Quando você conseguir caminhar livre, e só assim, você poderá libertar sua igreja.

A igreja liberta será então a morada da comunidade verdadeira, sem amarras, sem ritos rotos, sem interditos, sem pecados nem mesuras devidas a ninguém; então a sua opressão não mais existirá, então o ar poderá assear livremente nos seus pulmões e na natureza exterior, e você se sentirá leve, tão leve, que pousará suave aos pés dos pés do necessitado, ali, onde caminha nosso irmão, Jesus.



Assuero Gomes


Cristão católico leigo da Arquidiocese

de Olinda e Recife.

sábado, 19 de maio de 2012

A DICA DE MARIA






A  DICA  DE  MARIA





“Façam o que Ele disser...”



Nasce o pensamento: “E, se a instituição eclesiástica romana começasse a seguir a orientação de Maria???”. Pois, somente alguém totalmente cego não consegue enxergar que a mesma se distanciou e se distancia das sugestões de Jesus de Nazaré (e – perdão – talvez sempre mais). Desejo ser claro: há muitas irmãs e muitos irmãos que, ou individualmente ou em grupos (‘católicos’ e ‘não católicos’), procuram mergulhar na sua mensagem de vida e amor, e vivê-la. Seja me permitido repetir: estou me referindo à instituição. E, aliás, a partir da ‘grande’ instituição mundial, também, às instituições menores (internacionais, nacionais, regionais e locais) que surgiram e ‘se inspiram’ nesta. Façamos a pergunta: “Todas essas instituições respondem ao convite de Maria, ‘servem’ à dica dela?”.

E mais uma pergunta: “Todas essas instituições oferecem condições mínimas para pôr em prática o que Maria sonha e, em primeiro lugar, condições humanas que hão de ser o alicerce para ser e crescer?”. Compreendemos facilmente a tese de Vicente de Paulo que afirma que o irmão que morre de fome, precisa – antes de mais nada - de uma partilha de pão; somente alimentado, ele terá condições de ouvir nossa ‘pregação’.

Mesmo sabendo que cada comparação claudica, pode-se afirmar que as pessoas hão de ser humanas para poder ser, por exemplo, bons cristãos, bons pais, bons médicos, bons padres, etc. Como Jesus foi humano! Como Helder Camara foi humano! Nossas instituições (não somente as religiosas!), compostas por seres humanos, são, tantas vezes, tão desumanas! Dói constatar que se apaga ‘o humano’, inúmeras vezes ‘culpando’ a vontade de Deus para – na verdade – manter e até fortificar estruturas de poder e tradições vazias.

Durante o Mês Mariano, muitas mulheres e muitos homens no Nordeste do Brasil relembram Maria. A religiosidade popular prepara com zelo e vive com entusiasmo celebrações carinhosas em homenagem à ‘Nossa  Senhora’. Não seria o caso de, ao lado destas expressões festivas, também espalhar, alto e bom som, “Façam o que Ele disser”? Não tenho dúvidas: Maria, feliz com os aplausos, viverá alegria mais profunda! Outra firme certeza: quanto mais pessoas aceitam e vivem – de verdade – a dica de Maria, tanto mais possibilidade de mudança em estruturas e instituições existe... E, recordando que nosso Deus é um Deus que deseja vida e que Jesus afirma que veio para que todos tenham vida, é certo que a vida ganhará em qualidade!



João Dubar

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Lilith





Lilith



Deus criou três mulheres, três mulheres Ele criou.

No princípio Deus criou Lilith, a primeira mulher de Adão (Gn 1,27). Depois Deus criou Eva (Gn 2,22), a segunda mulher de Adão.

Finalmente Deus criou Maria, a mãe de seu único filho, Jesus.

Lilith, criada a partir do mesmo barro, não quis se submeter a Adão, pois totalmente independente, afetiva e sexualmente, nem se submeteu ao próprio Deus. Condenada a vagar em lugares desertos e inóspitos, foi identificada com demônios, tendo sua manifestação mais clara no próprio Jardim do Éden na figura da serpente.

Lilith está associada à luxúria e devassidão, assim como aos abortamentos provocados, ao adultério, aos sacrifícios cruentos, à morte. Em diversas civilizações foi reconhecida como divindade feminina ligada muitas vezes à lua, pela sua inconstância de caráter, na Suméria ela está associada a uma categoria de demônios da tormenta e ventos do deserto, na Babilônia era cultuada como divindade da fertilidade e demônio por suas alterações de personalidade, ora boa ora cruel. Na Mesopotâmia antiga era identificada a um demônio feminino da noite portadora de doenças e até da morte. Na mitologia grega alguns estudiosos a identificam como Hécate, a mulher escarlate, a guardiã dos infernos, montada em um gigantesco cão de três cabeças, chamado Cérbero. É, no entanto, na tradição hebraica que mais detalhes temos sobre essa personagem misteriosa, muito provavelmente banida da tradição cristã na Idade Média, por tudo que ela representa; segundo essa tradição dos judeus, cujo primeiro contato com Lilith deve ter se dado durante o cativeiro da Babilônia, Lilith tinha algo em torno de 100 filhos por dia, quando nasciam meninas eram chamadas de súcubus e meninos de íncubus, que se alimentavam da energia desprendida do ato sexual e de sangue humano (quem sabe daí não se origina a lenda dos vampiros?). Nos poucos relatos católicos medievais que sobreviveram ao tempo, algumas coisas são interessantes, como por exemplo, ‘ao ataque de Lilith, o possuído sentiria uma forte dor no peito, como uma vingança dela por ter sido obrigada a ficar por baixo de Adão durante o ato sexual e ainda sua vagina teria a capacidade de cortar o pênis’. Ao mesmo tempo em que Lilith representa a liberdade sexual feminina, também representa a castração masculina.

O que espanta é o súbito interesse que tem despertado essa personagem infeliz em alguns círculos feministas e de intelectuais atuais. Seria um sinal dos tempos ou um modismo passageiro?

Resta a certeza de que mesmo tendo Eva caído em tentação (Gn 3, 1-6), Maria esmagou a cabeça da serpente para sempre (Gn 3,15).



Assuero Gomes


Médico e escritor

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Maria, mãe




                                                                  by David Gomes


                                                                  Maria, mãe



Fizéssemos um caminho para entender os atalhos e desvios dos conceitos e preconceitos que vivem dentro de nós e dentro da nossa sociedade, certamente teríamos muitas surpresas e descobertas. São sentimentos enraizados desde o Brasil colônia portuguesa, a maioria das vezes inconscientes e incorporados no nosso dia a dia, que nem nos damos conta.

Como num exercício reflexivo vamos fazendo nossas escolhas para os cargos de comando, de administração, de direção, enfim, de poder: entre o homem e a mulher, a sociedade escolheria o homem, entre um branco e um negro, o branco. Entre o educado de nível superior e o analfabeto, o educado e, se, entre o educado no Brasil e outro com curso superior na Europa, este último, com certeza. Entre o jovem e o idoso, o jovem. Entre o católico e o umbandista, o católico. Entre o sadio ou o portador de alguma enfermidade não incapacitante, o sadio. Entre o pobre honesto e o rico esperto, o rico. Entre o trabalhador e o que vive de rendas, este último. Estranhas nossas opções, mas elas nos revelam o porque de termos chegado com o Brasil aonde chegamos.

Ouçam uma carta de uma mãe brasileira, igual a tantas outras:

Não tenho trabalho, sou negra, pobre. Vivo de favor, pedindo a um e a outro. Grávida, já ninguém me quer, nem patroa nem homem. Doente. Sem remédio. Sem comida. Desnutrida, a natureza suga minhas últimas proteínas para o filho que está no ventre. Não tenho nenhum lugar para nós dois. Nem mesmo um para mim nem um para ele. Mãe sem marido, sem família, sem futuro. Sem saúde. Uma chaga para a sociedade. Roupa esfarrapada. Um rosário de nódulos carrego pelo corpo. O sangue fraco. Sífilis, cancro, anemia, Aids, tuberculose, desnutrição. Sou um estorno, um transtorno.

Quem vai me empregar? Quem vai me socorrer?

Nas noites, dormindo nas calçadas sujas, rezo: Ave Maria, veja minha desgraça. Onde está o Senhor? Sou maldita entre as mulheres? É maldito o filho do meu ventre? Santa Maria, mãe de Jesus, olha para mim, sofredora, agora nesta hora que é de morte para mim.

Procuro abrigo, procuro justiça, procuro pão, mas a resposta é a mesma: -Não há lugar para vocês. Procuro entrar nos templos : - Aqui não há lugar para vocês. Procuro a maternidade:- Aqui não há vaga para vocês.

E mais uma vez vou rezando minha ladainha de sofrimentos pelas portas da cidade, uma Belém às avessas. Todas fechadas. Todas surdas e cegas.

Uma só coisa me mantém viva, uma só certeza: Sou filha de Deus, amada por Ele até o infinito, e cada lágrima derramada por mim é retida e contabilizada por Ele e por sua Mãe, que as vão juntando num terço cristalino, mais lindo e brilhante que qualquer ouro de Ofir, mais resplandecente que a chuva. Cada lágrima minha é uma chuva no coração de Maria, mãe de Deus, minha mãe.

Um feliz dia das mães para todas as leitoras e leitores, pois certamente todo dia é dia das mães, uma vez que a grande maioria das mulheres é mãe, e o restante da humanidade nasceu também de uma delas. Especialmente para as mulheres que lutam no dia a dia para serem mães, pais, esposas, amantes, companheiras, educadoras e ainda ter “a estranha mania de ter fé na vida, com gana e com garra”.


Assuero Gomes

Pediatra, escritor.

assuerogomes@terra.com.br




sábado, 12 de maio de 2012

Maria, luz da Manhã!








Maria, luz da manhã!



Empreste-me a poesia da cosmo visão dos antigos, que via em cada astro o olhar de uma divindade cintilante, a nos observar sob uma abóbada de cristal nos céus da Mesopotâmia. Dê-me o cantar das loas divinas do salmista, na harpa de Davi, ou a beatitude da sensação da brisa passando suave por sobre o manto de Elias.

O astro sol com seu fulgor aquecendo e iluminando a humanidade, mergulhando no vale da noite e renascendo a cada dia na sua luz, empresta sua claridade à lua. Permita-me o sol, e sua intensidade, deter-me a contemplar a mais bela criatura da noite que não permite que a escuridão derrame seu assombro pelas cidades dos homens nem pelos vales da terra, nem pelas criaturas dos campos.

O sol nos eleva a Deus: quem poderá contemplar face a face o Senhor e continuar vivo? Perguntam os escritos sagrados...quem poderá contemplar face a face o sol na sua maior intensidade e continuar enxergando? No entanto, a lua nos enleva na sua beleza meiga, tão feminina, tão feminina, que se mostra a face terna de Deus, quando mesmo ela não tendo luz própria, reflete, humilde, a luz que absorveu do sol e a partilha com todos os filhos e as filhas de Eva, para que não pereçam na escuridão da noite.

Prenúncio da aurora que virá, revela a presença do sol, mesmo na madrugada, sendo alento para os caminheiros, farol para as embarcações perdidas e rumo aos errantes, inspiração para os poetas, paixão para os enamorados, consolo para os desesperados. Presença bela no mar como no céu dos sertões.

Que seria da noite sem a lua e da humanidade sem Maria? Como pronunciar o nome de Deus sem um grande temor, se não a houvesse, pois foi ela quem o acolheu pequeno, o amparou nas primeiras quedas, o perdoou nas primeiras travessuras, quem enxugou suas primeiras lágrimas e ouviu suas primeiras palavras balbuciadas em aramaico. Quem foi seu consolo e sua luz nas noites de medo pelas quais toda criança passa? Quem saciou sua sede e sua fome e quem lhe ensinou as primeiras palavras da oração “escuta oh Israel, o Senhor é teu Deus....”?

Quem estará nos nossos lábios na noite mais escura de nossas vidas, no nosso momento derradeiro? Quem rogará por nós, senão aquela cujo simples suspiro conta mais que a oração de toda constelação celeste?

Teu nome é Maria, luz da manhã!



Assuero Gomes


quinta-feira, 10 de maio de 2012

Olhando Maria






Olhando Maria



Sobem o morro multidões em crise e outros nem tanto, felizes. Alguns vendedores experimentam o milagre da sobrevivência mais farta, por pelo menos oito dias. Crianças sonham com o carrossel do parque popular, os vendedores de velas e fitas se alegram. Patroas e empregadas sobem juntas. Prostitutas e freiras. Mendigos pedem, senhoras pedem, o pároco pede, o coral canta, os fogos explodem. É júbilo, é oração, é festa.

Quem os vê de longe pode pensar numa serpente caprichosa que vai ser pisada pelos pés da Virgem, mas são passageiros de uma terra em movimento, paroquianos do planeta, poeira cósmica cintilante e opaca, a romaria das filhas e dos filhos que segue morro acima. Vão debulhar suas novenas, como grãos semeados em terços devotos.

É festa no Morro. É festa no coração, entre lágrimas e sorrisos e olhares todos procuram pela Mãe. Não será esta a eterna procura dos seres humanos enquanto vivos? Procuram o carinho, o alívio, a proteção, a saúde, o conforto. Alguns sobem de joelhos, outros carregam pedras, como se o fardo de viver e caminhar já não fosse bastante pesado para todos, especialmente para os miseráveis, filhos e filhas de Eva neste vale de lágrimas.

Vãos os devotos e os profanos, os puros e os promíscuos, estão de azul e branco. Olham serenos o olhar sereno da serena maternidade de Maria.

O que pensará a Mãe nestes dias de festa e devoção?

Olhando aquela multidão desesperada e compassiva, como ovelhas no meio de lobos, olhará para o Filho e intercederá por cada um, citando nome por nome, derramando misericórdia no já transbordante coração misericordioso de Jesus. Bastando um olhar de súplica, que vale mais que todas as orações de todos os anjos e santos do universo celeste. Maria contará no seu coração cada lágrima de uma mãe aflita, de um pai de família desempregado, de um drogado, de uma violentada, de uma família destroçada. Transformará estas lágrimas em um rosário translúcido, como uma jóia rara, e o depositará nas mãos do Filho para que os alivie.

Lá vai o cego camelô vendendo óculos, o profeta bêbado que grita contra o governo, a cantora lírica que está afônica, a afilhada que foge da madrinha, o homem de paletó com a Bíblia na mão clamando o fim do mundo, o aleijado tentando subir correndo, a gestante que não encontrou lugar para ela na maternidade, o pedinte com a perna enfaixada, a faminta que pede comida numa lata de goiabada, o dançarino de frevo numa cadeira de rodas, e a procissão aumentando. É a humanidade peregrina no seu cortejo humano aos pés da santa.

O que ninguém sabe, e isso é um segredo mariano, é que ela desce do pedestal, e ali no meio de seus filhos e filhas caminha com eles, incógnita, invisível, no entanto aqueles que veem com os olhos do coração, especialmente as crianças e os pobres, a reconhecem e se animam mais um pouco, até a chegada final da peregrinação. Segue com eles cantando a canção e os hinos de vitória, pois o Filho traz a história na mão.

Olhar Maria, só através dos olhos dos necessitados, dos aflitos e dos corajosos. Entender Maria só com o coração ferido de uma mãe cujo filho sangra a dor do abandono e da necessidade. Pedir a Maria é ter certeza da sua intercessão junto ao Filho, agora, amar Maria só amando seus filhos, que são nossos irmãos.



Assuero Gomes


Cristão católico leigo de Olinda e Recife

terça-feira, 8 de maio de 2012

Maria antes da Assunção






Maria antes da Assunção



Lembre-se cara irmã, caro irmão, lembre-se bem, que antes, muito antes, que os homens e as instituições produzissem as belas obras de arte que mostram a ternura, a beleza, a contemplação, de nossa Mãe...

Muito antes que a tivessem ilustrado e a colocado em redomas, altares e sacrários, e houvessem construído belíssimas igrejas, catedrais, basílicas e capelas...

Muito antes das aparições, verdadeiras aparições. Mesmo antes que houvesse a nossa Igreja, as devoções mariais, os terços, os rosários, os benditos, as ladainhas, os cantochões....

Muito antes dos programas piedosos de rádio, televisão, de caravanas e santas peregrinações, das camisetas estampadas, dos adesivos, das medalhas, muito antes de tudo isso, e ainda mais...

Antes que Judas traísse, que Pedro negasse, que Barrabás se vangloriasse, que Pôncio Pilatos se embebedasse, que Jerusalém fosse aniquilada, antes que a primeira pedra atingisse Estevão, que Saulo transmudasse em Paulo...

Antes mesmo que Zacarias recuperasse a voz, que Isabel se rejubilasse, que a esterilidade das antigas instituições se tornasse fértil, e antes que dessem falta do vinho na festa...

Há Maria.

Simples, tranquila, serena majestade do serviço. Há a Maria que carrega lenha, que tira água do poço, que sofre com as outras Marias, que dá coragem aos fracos na perseguição...

Maria morena, que cozinha para sua família, que ensina seu pequeno a falar, a orar, a andar, a se lavar...serena mãe que acode, que cuida, que pensa as feridas e os arranhões. Mãe que se reúne com outras mães ao cair da tarde para confabular com suas semelhantes, para sorrir com as outras, para chorar com as outras, para servir com as outras.

Maria que migra à procura de segurança, que dá à luz nova vida revestida de fraqueza entre dores e sorrisos. Maria que enfrenta soldados para defender sua cria, que acompanha seu esposo, que ilumina sua casa, sua família, seu lar. Maria que amamenta, que separa sua porção racionada de comida para que não falte aos seus, Maria que sorri, o doce sorriso da majestade misteriosa de um reino incipiente e invisível aos olhos do mundo, mas que para ela já brotou do seu ventre.

Lembre-se caro irmão, cara irmã, esta Maria, antes do dourado, da coroa, das jóias que lhe puseram a contragosto, é muito mais bela, mais real, mais necessária.

E antes de retirar-se, após sua oração, olhe com carinho, com os olhos de ver por dentro, os inúmeros filhos dela, seus irmãos que perambulam do lado de fora dos templos, das casas e dos lares, pois não há lugar para eles. E olhando, se indigne, pois são seus irmãos e suas irmãs, e veja então, que não se pode agradar uma Mãe, sem acudir seus filhos que estão sofrendo.

Terna, doce, sempre virgem Maria, pena que nossos olhos de olhar para dentro estejam tão cegos, que não podemos te vislumbrar em plenitude. Mas mesmo assim, na nossa assunção derradeira, segura na nossa mão infiel, para que não nos percamos no caminho.

Amém!



Assuero Gomes



domingo, 6 de maio de 2012












A serena majestade de Maria



Assim como uma visão sem ser visão, apenas sensação de comunicação, como um vento de brisa suave invadindo o instante da alma em oração, ousei fazer uma pergunta, que na verdade não fui eu quem a fiz, talvez o sopro do Espírito.

Ele quis revelar através daquela que é repleta do Espírito, numa pergunta, que foi se desfolhando em outras, até que o véu deixasse deslumbrar a luz.

A pergunta, súbita e aparentemente sem sentido, foi assim revelada: ‘Senhora, se durante a infância do Menino, a senhora antevendo o sofrimento que haveria de vir, pedisse ao Pai, para que fosse mudado o desenvolver da história, Ele lhe teria atendido?’ Então como um sorriso quase imperceptível, suave como o sopro matutino, Ela respondeu apenas ‘Sim’. Mas a ousadia do vento que sopra onde quer e quando quer instigou para mais uma pergunta: ‘A Senhora pressentia o que o Menino haveria de passar?’ Mais uma vez, com uma serena majestade Ela se dignou a olhar para baixo e meigamente, como só podem ser as mães amorosas, respondeu ‘Sim’.

Não ousando mais nada perguntar e invadido por uma sensação de imensa paz, aquietei-me contemplativo; mas em seguida, brotou dentro do meu coração uma última pergunta, vinda de não sei onde e feita à revelia da razão e da emoção: ‘A Senhora, em algum momento, teve vontade de pedir ao Pai?’ Ah, serena majestade de olhar e sorrir! Tão pequeno me senti naquele momento e ao mesmo tempo tão compreendido que a derradeira resposta me fez perceber: ‘Não’.

Nesse momento a contemplação levou-me a um estranho lugar onde eu nunca havia imaginado poder estar, o coração do discípulo amado aos pés da cruz e compreendi então, assim de repente, em plenitude as palavras do Senhor: ‘Mãe, eis aí o teu filho. Filho, eis aí a tua Mãe’.

O que poderia eu mais pensar ou perguntar? Senão apenas sentir uma imersão numa paz sublime, como se num oceano de luz estivesse a flutuar, como numa água-viva sideral, cósmica, entre jardins de estrelas.

O que poderia mais desejar, senão apenas permanecer?  E permanecendo armar como que uma tenda, assim pertinho do Mistério, quase o tocando, doce mistério de onde emana toda forma de vida. E permanecendo não mais sofrer, nem mais sonhar, apenas sentir a luz em plenitude.

A Senhora, no entanto, com seu sorriso terno, parecia perceber todo o sentimento que emanava de mim, pois neste estado só se é sentimento, não mais matéria nem ilusão, não mais inteligência nem raciocínio, apenas sentimento, e fazia-me retornar para a planície. Sob seus pés o sacrário aberto, como um generoso útero que não retém o filho, mas que o dá à luz, sem dores de parto, sem angústia, sem lágrimas. Generoso e sagrado útero que partilha seu fruto como um pão, com a humanidade faminta.

O último peregrino da fila, compungido, recebeu a partícula em atitude silenciosa e voltou ao seu lugar na assembléia. Com a âmbula quase vazia, mas repleta de significado, dirigi-me ao sacrário, aos pés da Senhora, e ali a depositei. Antes, porém, por alguns instantes imperceptíveis, ainda olhei para a serena face. Pude ouvir em seguida, do sacerdote ‘Ide em paz e o senhor vos acompanhe’.

O que entender de tudo isso?



Assuero Gomes


Médico e Escritor 




terça-feira, 1 de maio de 2012

A parede e a cortina







A parede e a cortina



Impenetrável, de tijolo e cimento, a parede sólida demonstra sua segurança e sua imobilidade. Como uma rocha, protege. Na sua pele de paquiderme se assentam pregos e brocas. Permite algumas fissuras brandas, alguns furos esporádicos, mas sua constitucionalidade é perene. Nela as vigas e o teto se sustentam.

Leve, de seda esvoaçante, sensível ao menor contato do vento impudico, a cortina se mostra sem se mostrar, como um véu, como um véu. Noiva prometida da parede sem jamais se consumar, ela lha toca sem se deixar prender.

Leveza e peso, aspereza e subtilidade. Assim são as relações humanas. Ora somos parede, ora somos cortinas. São completudes universais que sobrevivem no nosso mundo interior, ou no pequeno cosmos dos nossos relacionamentos.

A cortina vela e revela o que quer revelar sem jamais perder o mistério. Que seria da nossa vida sem o mistério? Acabar-se-iam as religiões, as artes, os amores perdidos e buscados nos versos de poetas insones. A parede proíbe, retêm, interpõe. É um interdito que limita, no entanto ela é fortaleza sob a qual a vida pode evoluir com segurança. Sem ela os limites imprecisos ou inexistentes permitiriam vazões de instintos, autofágicos, desumanos.

A parede e a cortina são contíguas, são eternos outros, mas são uma só, no quarto de núpcias, na sala de parto, no velório. Serão belas enquanto juntas, mas o que são separadas? Tecido, pedra, cal. Há paredes que sangram, que gemem, que inóspitas se seduzem por belas cortinas. Há cortinas que sustentadas à parede, não a contemplam e vivem, sedutoras como borboletas, tentando alçar vôo, infiéis borboletas que cortejam toda a primavera.

Cortinas que são vestes de paredes, indumentárias de gala ou simples composições arredias, de suburbanas construções. Cortinas que fazem as vezes de paredes, separando leitos de hospitais ou camas de pais e filhos. Cortinas que já não descortinam nada e envelhecidas com suas fibras rotas e seus alinhavos frouxos e senis são jogadas ao canto da parede, e torna-se-ão um banquete de traças e ácaros.

Paredes que já não sustentam nem a si próprias. Estão em ruínas de mosteiros afundados ou são relíquias de terremotos ou descaso de abandonados. Já se esqueceram de suas cortinas juvenis, belas e sedutoras, de suas rendas e cetins. Hoje descascadas e sem reboco, sem um prego sequer a que sustente ou seja útil, nada esperam, nada esperam.

Restará ao vento como sopro do passado, que antes barrado pela dureza parede, mas que penetrou em frestas e atiçou o fogo das cortinas e alisou a aspereza das paredes, acariciar o pano, entulho, jogado aos pés da parede e agora as ruínas que lhe permitem trafegar livremente entre escombros, reverenciar o resto da construção, que outrora abrigou famílias, festas e sonhos debutantes.

O vento será uma visita esporádica, fugidia, aguardada como quem aguarda um último prato de sopa, ou o som de ouvir a palavra de alguém querido que já partiu.

A parede e a cortina continuarão juntas na projeção de algum filme antigo, ou nalgum álbum de fotografias, porém quase ninguém as perceberá. Foram felizes na sua cumplicidade efêmera. Foram felizes.





Assuero Gomes

Médico e Escritor