A parede e a cortina
Impenetrável, de tijolo e
cimento, a parede sólida demonstra sua segurança e sua imobilidade. Como uma
rocha, protege. Na sua pele de paquiderme se assentam pregos e brocas. Permite
algumas fissuras brandas, alguns furos esporádicos, mas sua constitucionalidade
é perene. Nela as vigas e o teto se sustentam.
Leve, de seda esvoaçante,
sensível ao menor contato do vento impudico, a cortina se mostra sem se
mostrar, como um véu, como um véu. Noiva prometida da parede sem jamais se
consumar, ela lha toca sem se deixar prender.
Leveza e peso, aspereza e
subtilidade. Assim são as relações humanas. Ora somos parede, ora somos
cortinas. São completudes universais que sobrevivem no nosso mundo interior, ou
no pequeno cosmos dos nossos relacionamentos.
A cortina vela e revela o que
quer revelar sem jamais perder o mistério. Que seria da nossa vida sem o
mistério? Acabar-se-iam as religiões, as artes, os amores perdidos e buscados
nos versos de poetas insones. A parede proíbe, retêm, interpõe. É um interdito
que limita, no entanto ela é fortaleza sob a qual a vida pode evoluir com
segurança. Sem ela os limites imprecisos ou inexistentes permitiriam vazões de
instintos, autofágicos, desumanos.
A parede e a cortina são contíguas,
são eternos outros, mas são uma só, no quarto de núpcias, na sala de parto, no
velório. Serão belas enquanto juntas, mas o que são separadas? Tecido, pedra,
cal. Há paredes que sangram, que gemem, que inóspitas se seduzem por belas
cortinas. Há cortinas que sustentadas à parede, não a contemplam e vivem,
sedutoras como borboletas, tentando alçar vôo, infiéis borboletas que cortejam
toda a primavera.
Cortinas que são vestes de
paredes, indumentárias de gala ou simples composições arredias, de suburbanas
construções. Cortinas que fazem as vezes de paredes, separando leitos de
hospitais ou camas de pais e filhos. Cortinas que já não descortinam nada e
envelhecidas com suas fibras rotas e seus alinhavos frouxos e senis são jogadas
ao canto da parede, e torna-se-ão um banquete de traças e ácaros.
Paredes que já não sustentam nem
a si próprias. Estão em ruínas de mosteiros afundados ou são relíquias de
terremotos ou descaso de abandonados. Já se esqueceram de suas cortinas
juvenis, belas e sedutoras, de suas rendas e cetins. Hoje descascadas e sem
reboco, sem um prego sequer a que sustente ou seja útil, nada esperam, nada
esperam.
Restará ao vento como sopro do
passado, que antes barrado pela dureza parede, mas que penetrou em frestas e
atiçou o fogo das cortinas e alisou a aspereza das paredes, acariciar o pano,
entulho, jogado aos pés da parede e agora as ruínas que lhe permitem trafegar
livremente entre escombros, reverenciar o resto da construção, que outrora
abrigou famílias, festas e sonhos debutantes.
O vento será uma visita esporádica,
fugidia, aguardada como quem aguarda um último prato de sopa, ou o som de ouvir
a palavra de alguém querido que já partiu.
A parede e a cortina continuarão
juntas na projeção de algum filme antigo, ou nalgum álbum de fotografias, porém
quase ninguém as perceberá. Foram felizes na sua cumplicidade efêmera. Foram
felizes.
Assuero Gomes
Médico e Escritor
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