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terça-feira, 1 de maio de 2012

A parede e a cortina







A parede e a cortina



Impenetrável, de tijolo e cimento, a parede sólida demonstra sua segurança e sua imobilidade. Como uma rocha, protege. Na sua pele de paquiderme se assentam pregos e brocas. Permite algumas fissuras brandas, alguns furos esporádicos, mas sua constitucionalidade é perene. Nela as vigas e o teto se sustentam.

Leve, de seda esvoaçante, sensível ao menor contato do vento impudico, a cortina se mostra sem se mostrar, como um véu, como um véu. Noiva prometida da parede sem jamais se consumar, ela lha toca sem se deixar prender.

Leveza e peso, aspereza e subtilidade. Assim são as relações humanas. Ora somos parede, ora somos cortinas. São completudes universais que sobrevivem no nosso mundo interior, ou no pequeno cosmos dos nossos relacionamentos.

A cortina vela e revela o que quer revelar sem jamais perder o mistério. Que seria da nossa vida sem o mistério? Acabar-se-iam as religiões, as artes, os amores perdidos e buscados nos versos de poetas insones. A parede proíbe, retêm, interpõe. É um interdito que limita, no entanto ela é fortaleza sob a qual a vida pode evoluir com segurança. Sem ela os limites imprecisos ou inexistentes permitiriam vazões de instintos, autofágicos, desumanos.

A parede e a cortina são contíguas, são eternos outros, mas são uma só, no quarto de núpcias, na sala de parto, no velório. Serão belas enquanto juntas, mas o que são separadas? Tecido, pedra, cal. Há paredes que sangram, que gemem, que inóspitas se seduzem por belas cortinas. Há cortinas que sustentadas à parede, não a contemplam e vivem, sedutoras como borboletas, tentando alçar vôo, infiéis borboletas que cortejam toda a primavera.

Cortinas que são vestes de paredes, indumentárias de gala ou simples composições arredias, de suburbanas construções. Cortinas que fazem as vezes de paredes, separando leitos de hospitais ou camas de pais e filhos. Cortinas que já não descortinam nada e envelhecidas com suas fibras rotas e seus alinhavos frouxos e senis são jogadas ao canto da parede, e torna-se-ão um banquete de traças e ácaros.

Paredes que já não sustentam nem a si próprias. Estão em ruínas de mosteiros afundados ou são relíquias de terremotos ou descaso de abandonados. Já se esqueceram de suas cortinas juvenis, belas e sedutoras, de suas rendas e cetins. Hoje descascadas e sem reboco, sem um prego sequer a que sustente ou seja útil, nada esperam, nada esperam.

Restará ao vento como sopro do passado, que antes barrado pela dureza parede, mas que penetrou em frestas e atiçou o fogo das cortinas e alisou a aspereza das paredes, acariciar o pano, entulho, jogado aos pés da parede e agora as ruínas que lhe permitem trafegar livremente entre escombros, reverenciar o resto da construção, que outrora abrigou famílias, festas e sonhos debutantes.

O vento será uma visita esporádica, fugidia, aguardada como quem aguarda um último prato de sopa, ou o som de ouvir a palavra de alguém querido que já partiu.

A parede e a cortina continuarão juntas na projeção de algum filme antigo, ou nalgum álbum de fotografias, porém quase ninguém as perceberá. Foram felizes na sua cumplicidade efêmera. Foram felizes.





Assuero Gomes

Médico e Escritor





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