A Cidade de Lynch revisitada
Apesar de ter intenção de jamais
voltar à cidade de Lynch, por estas circunstâncias do destino que fogem à nossa
vontade, encontrei-me nela no 1º. de maio deste ano.
A saudade verteu em meu coração
um pouco de nostalgia.
Dia do trabalhador, e não do
trabalho, esperava eu, talvez inconscientemente, uma festa entre comícios e
manifestações, crianças nas praças e ruas com suas famílias operárias; mas a
manhã estava fria e sonolenta, de um cinzento pesado, quase morto.
Deparei-me de repente com uma
visão desesperada e silenciosa, que gritava na sua imagem mais que mil gritos:
como corpos cobertos em sacos de lixo, plantados na areia da praia, assim como
se o mar os houvesse vomitado, mas o mar não aceitava estes corpos, pois náufragos
foram de uma cidade violenta e nada tinham a ver com o mar; belo mar de uma
orla que fora lúdica e gentil em tempos passados.
Não era pesadelo. Mais de mil e
quinhentos mortos em quatro meses de ano. Mais que qualquer guerra atual em
curso no planeta. Corpos jazem neste tecido social roto que amortalha a cidade.
Contradição de anseios cívicos,
como cidadãos do medo que se tornaram, nesta Gotham City sombria, sem heróis,
inquiri-os sobre seus sentimentos. Medo. Mais medo. Insegurança. Aprovam quando
a polícia mata sem julgamento, porém na sua contradição, a maioria não confia
nesta polícia.
Na melhor tradição do capitão
William Lynch passaram a matar, eles mesmos, os assaltantes, com o beneplácito
e a cumplicidade da população. Estranha cidade a qual esta se transformou. Não
há mais quase ninguém à noite, a brisa do mar que o poeta cantava e seus
lampiões, já não há. Mosquitos infectados rondam a miséria. Pululam crianças
nos semáforos exibindo a degradação social, enquanto nas publicações e cartazes
se alardeia a melhoria de vida da população.
Quem foste e o que és agora, oh
triste cidade? Far-te-ia um poema com 30 copos de chope, mas não há chope,
apenas copos vazios de lágrimas; domar-te-ia o rio, cão sem plumas, mas ele
está morrendo e já não há o que domar, apenas limpar o canto da boca como num
último suspiro.
Violência, que nasce da injustiça
e que clama com lâminas e revólveres, entre fumaças e seringas, destruíste uma
bela cidade. Embrutecida a população já não ouve serestas nem se dá conta de
versos e rimas, mesmo as preciosas.
Ruas vazias de cidadãos vazios de
esperança, como os sacos de lixo espalhados pela areia da praia. Cidadãos
encarcerados nas suas ilhas de ferro farpado e eletrificado, oprimidos por
impostos pesados, que se isolam e se isolam e se isolam...
A periferia que dormita, quase
inerte, a catar restos de latinhas de alumínio e a vender suas drogas aos mais
abastados, sangra uma cidade que carece de esperança. Sangra-lhe a garganta com
cacos de vidro, em cada moto, um sobressalto, em cada saída o regresso
duvidoso.
Melhor guardar de ti uma foto, um
postal, onde mesmo imóvel possamos projetar nosso desejo de te ver bela, algo
como uma mirada narcísea, onde se vê a si próprio no olhar da amada. Melhor
guardar de ti o doce fruto da juventude, com o qual alimentavas o futuro.
Que fizeram de ti, bela cidade?
Assuero Gomes
Médico pediatra, escritor.
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