Destas coincidências que não se pode duvidar
porque quando acontecem já aconteceu e nada mais resta senão acreditar,
aconteceu em duas cidades, uma na Itália, perto de Roma outra no nordeste do
Brasil, lá para as bandas do sertão. A primeira muito rica e populosa, porém
sem jovens e muito menos crianças, a nossa, pelo contrário com muitas mulheres
e muitas crianças e muitas jovens, todas muito pobres.
Na nossa, por causa do custo para se manter o
circo que estacionara definitivamente nas suas paragens e tendo o dono
abandonado o leão por total falta de condições de alimentá-lo, foi obrigado a
abandonar também toda a troupe e suas instalações que já haviam se enraizado no
terreno seco. Na outra, a da Itália, aconteceu o contrário, um vasto prédio da
Igreja, devido ao esvaziamento de público, tornou-se praticamente sem uso e a
cúria local resolveu vende-lo. Quem se interessou como único pretendente foi
uma rica companhia circense internacional, que adquiriu o majestoso edifício, e
o transformou numa imensa casa de espetáculos.
Na nossa, a tristeza invadiu ainda mais aquela
pequena comunidade, pois o único divertimento que ainda havia eram as diárias
apresentações dos artistas, com o palhaço e suas mesmas piadas, uma bailarina e
suas varizes que já não se escondiam, o cachorro amestrado e banguelo que ao
final serviu como última refeição do leão, o apresentador com sua cartola rota,
o casal de trapezistas que vivia brigando sempre apesar de viverem juntos, e o
anão que fazia de tudo no circo desde alimentar o animal, fazer a faxina, ser dublê
de palhaço, vendedor dos ingressos e de pipocas.
Na cidade italiana a transformação da igreja em
circo não foi lamentada, pelo contrário, trouxe alegria aos velhinhos, pois as
bonitas dançarinas, de pernas torneadas, tornavam suas vidas mais felizes, os
trapezistas com os movimentos audaciosos junto ao jogo de luzes e som, ativavam
as adrenalinas dos expectadores, lembrando seus movimentos perdidos nas
artroses da vida. Animais exóticos atraíam a atenção da platéia daquele
continente cansado, fazendo com que ela, a platéia, viajasse para países
distantes, na sua imaginação... a mais recente aquisição foi um leão magro. O
próprio pároco passou a freqüentar os espetáculos quase diariamente e dava boas
gargalhadas.
Aqui no sertão, para aproveitar as instalações
abandonadas, resolveu-se criar uma igreja, pois acharam que o povo estava
vivendo mergulhado no mundo pecaminoso, cuja vida se resumia em trabalhar e ir
para o circo, sem penitência nem reflexões nem celebrações nem mortificações,
como se não bastasse a fome e a falta de perspectiva. Em pouco tempo
consertaram a lona rasgada, ajeitaram a bilheteria, venderam o leão para um
zoológico da capital que o revendeu para um circo novo da Itália. Aproveitaram
o anão para as coletas. O apresentador, agora sem cartola, para organizar o
dízimo, os trapezistas, se quisessem trabalhar teriam que se casar na igreja ou
se separar de vez, a bailarina foi proibida de fazer parte, pois mostrara suas
pernas todas as noites, e o palhaço...esse não tinha jeito mesmo, pois devido a
tantas palhaçadas que fizera no meio daquela gente foi convidado a se retirar,
porém resistiu e ficou na platéia.
No circo italiano, as roupas dos padres e
acólitos assim como os paninhos do altar, que já estavam em desuso há muito
tempo, foram doadas num gesto de caridade para a nova igreja do Brasil. Foi uma
grande honra para o nosso pároco que pode se paramentar com roupas do século
retrasado, e as vestimentas dos ajudantes e pajens serviram, com alguns
retoques, para o anão, que pela primeira vez na vida usou roupas importadas.
Foi uma festa. O problema era que o povo acostumado com o circo, queria
diversão e não penitência nem reflexão. A igreja de Roma, ou foi o circo, já não
lembro mais, orientou para que arranjassem um padre antigo já falecido com fama
de santidade e se iniciasse novenas e trezenas, espalhassem sua fama e se
abrisse um processo de canonização. Colocassem umas músicas animadas, dançassem
e louvassem com muitos gestos, todas as noites, prometessem curas e
prosperidade para todos; os que não conseguissem era por culpa deles mesmos e
de sua pouca fé. Em pouco tempo duplicou o trabalho do antigo apresentador do
circo, todos ficaram felizes e maravilhados...bem quase todos, menos o palhaço,
que cada dia mais triste chorava suas lágrimas de melancolia.
Assuero Gomes
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