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sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

A última viagem do Elefante Cego


A última viagem do Elefante Cego
 
 

 

O condutor do Elefante Cego, como um pastor, chegou antes nos verdes prados. No seu passo lento o paquiderme, ensaiava a Cegueira, quando lia o Evangelho segundo Jesus Cristo, nos jardins do Convento, transformado em memorial.

Foi no ano da Morte de Ricardo Reis, quando este, pensando em estar singrando os mares de Camões, numa Jangada de Pedra, para escapar do Cerco de Lisboa, procurou a Terra do Pecado, mas esta na verdade era a própria Caverna, esta terra, onde se refugiou. Na sua estrutura pesada e tendo a cegueira como guia, foi imprescindível que o condutor com toda sua lucidez, Levantando do Chão, guiasse o elefante na sua última jornada.
 

No seu caminho, muito à frente do animal, o condutor recebeu pedras, em vez de diamantes, do seu irmão Caim. Seu irmão, sangue do seu sangue verde vermelho, que rasgando o Ensaio sobre a Lucidez, preferiu As Intermitências da Morte, e quis condenar o condutor a uma grande e medieval fogueira inquisitorial.

Escapando, para jogar mais luz sobre o elefante, tentando restituir-lhe a visão, foi refugiar-se em terras de Cervantes, onde teve boa acolhida, entre primos da casa ibérica, talvez na ilha de Sancho Pança, talvez nas páginas do Conto da Ilha Desconhecida, entre a aridez da terra e dos homens.

O pastor-condutor finalmente alçou vôo e desvencilhado do peso do seu rebanho de um único e pesado quadrúpede, mergulhou na luz.

Banhado em luz, livre de toda presença obscura, viu plenamente.

Levava na sua pequena valise os óculos grossos, que já não mais necessitava, as anotações de Lanzarote e suas Pequenas Memórias, em Apontamentos. Embevecido de luz lembrou da sua pequena Bagagem de Viajante, viajante Deste Mundo e do Outro. Trazia na lapela, com orgulho, um pequeno martelo e uma foice, tão carcomidos e desgastados pelo tempo, que quase não se via mais.

“Dar luz aos cegos é prerrogativa de Deus” disse-lhe uma voz feminina, doce e suave “Mesmo para aqueles que não acreditam Nele?” perguntou o pastor de elefante “Especialmente para aqueles que não acreditam Nele” “E o meu elefante, como caminhará na sua escuridão?” “O elefante é pesado e teimoso. Pensa que tudo pode devido à sua força e à sua tromba, mas caminha para o Abismo” “É porque é cego e não vê” “Ele não vê porque é cego, no entanto não sabe que é cego e pensa que vê” “Se Deus existe, por que fez ele cego?” “Ele não é cego de nascença, ele é cego porque pensa que vê e não sabe que é cego”.
 

Silencioso ficou o pastor, extasiado que estava com tanta luz, como bálsamo para seus olhos, que se mantinham enxutos. A voz feminina falou então “Entra, vamos ver e assistir aos ensaios de algumas peças” “Quais?” “Podes escolher, A Noite, Don Giovanni, Que farei com este Livro? E A Segunda Vida de Francisco de Assis, que agora mesmo a está ensaiando com Clara” “Como permitem que ensaiem essas peças aqui?” “Gostamos de toda Criação” “Posso ficar aqui vendo tudo?” “Aqui é sua casa. Aliás, aqui é a casa de todos os povos” “Já estiveste na minha casa do outro lado do mar?” “Sim, numa Viagem a Portugal. Desde então e sempre, nenhum filho desta terra fica fora da minha proteção”.

Para os que ficamos cavalgando o Elefante, talvez um pouco mais cegos que de costume, na despedida do último cavaleiro lusófono, Saramago.

 

Assuero Gomes


Escritor e Médico

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