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domingo, 2 de dezembro de 2012

O homem que comeu as cinzas de Ângela, sua mulher.


O homem que comeu as cinzas de Ângela, sua mulher.

 

Era um cirurgião plástico de renome. Começara sua vida na batalha do dia a dia para se manter e cursar seus estudos. Vindo do interior, família bastante pobre. Lances de vida curtos como essas frases. Uma sobrevivência a cada dia. Uma refeição a cada corte no dia.

Tinha uma pulsão erótica quase mórbida, mas contida. Sublimava a cada nova colega. Focado nas metas. Trabalho, estudo, profissão. Lazer confinado no desejo impossível.

Conhecera Ângela no início da faculdade. Pálida suavidade de brancura aristocrática. Alta e esguia. Troca de olhares e fluidos virtuais, destes que os poetas exalam. Consumação plena em lances curtos, como essas frases.

Casamento, pai médico renomado, como nos contos fictícios. Ficção prenha de realidade. Situação estabilizada. Vida com respiração mais pausada, como numa frase cheia de vírgulas e reticências. Eros mais afoito, mais solto, mais imperial.   

Foram passando, como numa leitura rápida de texto curto, colegas de trabalho, enfermeiras, técnicas, depois pacientes e acompanhantes.

Era dourada a vida como borbulhas de champanhe. Na taça não via Eros de mãos dadas com seu irmão Tanatos, a brincar com o destino dos mortais. E as frase ficando mais longa, mais longa, mais longa.....quase sem parágrafos. Era como se Cronos olvidasse a brincadeira dos Titãs com os meros mortais.

Ângela apareceu com um nódulo na mama esquerda, aquela do coração. Como um minúsculo ponto, numa frase que parecia eterna. Tantas mamas ele já fizera com maestria de um escultor renascentista, tantas mamas passaram por suas mãos e lábios e olhos. O que seria um ponto, que jamais pensado final, talvez na base da exclamação e se muito da interrogação, mas jamais final. Quisesse Deus uma vírgula, até mesmo um ponto e vírgula...

Um ponto é um ponto. Infinito na sua definição.

Ângela definhou. Apesar de todas as técnicas terapêuticas. E havia tantas ângelas na sua vida, que se foram, que estão e que viriam. Tantas exclamações que ainda galgaria!

Um dia triste, como usam ser nessas histórias tristes, cremaram Ângela. Uma bela e hostil cerimônia sem sentido. Sentiu-se patético e sozinho junto a tantos convidados e a tantas palavras sem assento.

No carro, ao seu lado, muda e surda as cinzas de Ângela num hermético vasilhame de metal polido. Trajeto estranho esse na sua última viagem com Ângela.

Garagem automática. Carro bem seguro. Casa imensa. Casa. Frases cada vez mais curtas. Entre o dia e a noite cada vez mais cinza. Despejaria Ângela no jardim. Mas antes, bem logo antes que ultimasse o gesto, abriu o utensílio e comeu as cinzas de Ângela.

 

Assuero Gomes

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