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quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

QUARESMA

 
 
 
 
 
Reflexões quaresmais ao longo dos anos...
do Jornal Igreja Nova
 
QUARESMA




E TU, ONDE MORAS ?


FEVEIRO/MARÇO/ABRIL - 1993



Estávamos pensando no editorial deste número do IGREJA NOVA, como trazer alguma contribuição para o tema da Campanha da Fraternidade deste ano. Preocupados com as terríveis estatísticas de famílias sem moradia, de seres humanos sem lar, de projetos mirabolantes do próprios Jesus em pessoa, na noite de 05 de março apareceu na calçada da casa onde se faz a editoração do jornal.

Como responder nossas indagações, lá estava ele... bem à nossa frente!

Trajando uma camiseta desbotada e um roto calção sujo, estava tonto, de fome e de cola. Não se suportava em pé, e quando lhe perguntamos, onde moras? Desatou num pranto cujas lágrimas misturadas com catarro batizaram seu esquálido tórax de onze anos e obnubilado pela dor um "depois de Caruaru caiu tonto no chão.

Tomamos sua lata de cola e lhes demos algum alimento. A velha, triste e verdadeira estória de sempre, o "pai" bêbado e violento, a mãe morta, a fuga em alguma carroceria de caminhão, o primeiro vício, e lá esta ele, desta vez não estava discutindo com os doutores do templo, ou estava? Desta vez não era o pequeno Yeshua mas José Francisco da Silva. Lembramo-nos de José, tantos Josés, lembramos de Francisco, eterno grito de Assis, lembramos também dos Silva, nome do Brasil descalço, desempregado, do Brasil morando nas ruas, nas pontes, nos viadutos, nas delegacias, no lixo.

E Jesus nos perguntou, e tu, onde moras? Menos tonto, menos desfigurado, porém tão eloqüente que uma sensação de vazio e impotência tomou conta de nós. A criatura, obra prima de Deus, ali estava que nem bem humana já parecia. Ali estava a questionar nossa religião, nossa aspiração de vida, nosso engajamento político. Não nos deixou sofismar: "senhor tu moras no sacrário, tu moras no coração do homem, tu moras no paraíso celeste, tu moras sentado à direita do Pai, tu moras com Maria a Rainha do Céu", não nos deixaste sofismar, nos mostraste que realmente tu estás a procurar uma casa, um alimentação digna, um escola, uma família, um futuro humano, realmente tu apenas queres ser humano, simplesmente humano.




"ERAS TU, SENHOR ?"!

MARÇO-1995



E chegando o dia, depois da noite da última partida, eis que surge o Senhor da História, bem à nossa frente.

Deste encontro ninguém se furtará. Nem rico, nem pobre; nem crente ou ateu, de qualquer denominação, de qualquer raça. Nem o melhor ou o pior dos homens, ou das mulheres. Sem nada falar, o Senhor nos permitirá uma consciência plena de nossa vida. E de repente um turbilhão organizado de lembranças penetrará e trará à tona, do fundo de nosso ser, esta consciência. Como uma luz forte, fortíssima, iluminará nossas opções em relação aos outros. Então aos poucos, iremos notando que nossos adornos religiosos, nossos fetiches, nossos rituais, estão caindo por terra. E aos poucos nossa "moral", desvinculada da realidade de sofrimento dos nossos irmãos, vai caindo também. Percebendo já há algum tempo que nossa segurança produzida pelo acúmulo de bens, foi deixada lá para trás, desde ontem... E vamos ficando nus. Frágeis como recém-nascidos. E o Senhor da História, nada nos pergunta. Nada nos julga. Nada nos diz. Apenas nos fita com um olhar de compaixão amorosa. Sentimos então que não somos merecedores de sua presença, de seu olhar. De repente sua face, começa a se transformar no rosto de tantos irmãos que passaram por nossas vidas. É o mendigo, é o menino de rua, a menor prostituída, é o desempregado, é o abortado pela sociedade, é a multidão dos sem vez e sem voz, dos excluídos. É uma família inteira dos Sem-Terra, dos perseguidos, dos injustiçados, dos oprimidos. Aí, nossa nudez vai ficando mais intensa e surge então na nossa pele, as opções pessoais, as opções políticas, o novelo das relações que mativemos conosco mesmo, com nossa família, nossa comunidade e nosso povo.

Num olhar entre atônito e desesperado, esboçaremos uma pergunta tímida e constrangida : - Eras tu,Senhor?!



A SEMANA SANTA

MARÇO- 1996



Celebrar a Semana Santa é vivenciar, passo a passo os últimos momentos de Jesus de Nazaré aqui nesta terra, mergulhar com Ele na escuridão do sepulcro e no terceiro dia experimentar a plenitude da

Vida !

Podemos seguir este caminho de duas maneiras: a sós ou com a comunidade.

Se o percorrermos sozinhos, poderemos até a ter um conforto e um consolo nesta semana. Poderemos nos fortalecer na penitência da Sexta-feira, na espera da vigília do Sábado e na alegria do Domingo de Páscoa. Para muitos fiéis, este é o caminho mais usual de todos os anos. Alegarão com certa razão, que esta é a tradição e que Jesus cuida da salvação particular de sua alma.

Dois perigos nesta estrada, no entanto existem: o primeiro é que o caminho que percorremos pode não ser o da morte e ressurreição, mas um caminho criado por nossos próprios interesses e aspirações, por mais belos e sinceros que sejam; o segundo, é que o Jesus que seguimos sozinhos não seja o Jesus histórico, das escrituras, mas um mito que criamos à nossa imagem e semelhança, para responder às nossas angustias. Os dois perigos na verdade são um só.

Por outro lado, se caminharmos na Semana Santa, junto com a comunidade, estaremos sempre descobrindo um caminho novo, estaremos dividindo a penitência e somando as conversões, estaremos lavando os pés uns dos outros mas ao mesmo tempo experimentando na Santa Ceia da Quinta-feira o esplendor de uma vida eterna contida no pão partilhado entre os famintos.





EU ESTAVA PRESO E ME VISITASTE

JANEIRO/FEVEREIRO-1997




Estar preso, representa uma situação de submissão extrema incompatível com a imagem de Deus que existe em nós. Há quem afirme que a maior glória de Deus é o Homem e a Mulher de pé, plenos, completos em todas as suas aspirações e possibilidades.

Visitar um preso, é antes de tudo resgatar esta dignidade rompida.

Poder-se-ia compor as várias faces e situações de uma pessoa sem liberdade, tais como os escravos dos vícios, das paixões, dos instintos, das estruturas sociais, dos dogmas, dos ritos, da própria carga genética... mas neste tempo propício o Espírito nos pede para olharmos mais profundamente os encarcerados. Pede para refletirmos a situação desumana em que vivem estas criaturas de Deus, irmãos e irmãs nossas, que são jogadas nos calabouços subterrâneos de uma sociedade mais cruel do que muitos dos crimes dos que ali estão.

É hora de pensarmos nas questões que se apresentam a nossos olhos e a nossos corações: Por que, neste país, os grandes criminosos, os megadelinquentes, os poderosos corruptos, vivem livres e nababescamente ?Por que quem tem dinheiro para subornar e montar caríssimos esquemas de corrupção, imunes à ação da justiça, jamais vão para cadeia? Onde estão aqueles que desviam o dinheiro dos órfãos e das viúvas e dos aposentados ? Em que cela se encontram ?

Visitar os encarcerados é lutar pela justiça. Visitar um preso é levar no coração a fagulha do amor de Jesus. Um amor que está muito além da simples justiça dos homens, um amor que é misericórdia e compaixão.

Que esta Campanha da Fraternidade abra os caminhos do nosso país para a justiça, a paz, e a liberdade, e que seus filhos e filhas possam experimentar a presença de Jesus em suas vidas, concretamente.



UM DEUS ANALFABETO

JANEIRO/FEVEREIRO - 1998



De todas as loucuras do amor de Deus para com suas criaturas prediletas, é a Eucaristia a maior delas, sem dúvida. Tornar-se pão e tornar-se vinho para comungar com os homens e as mulheres de todos os tempos e de todos lugares.

De todas as loucuras que a insensatez dos homens e das mulheres faz com Deus, algumas são tão escandalosas que apenas uma infinita misericórdia, muito além da justiça, faz que Ele continue amando e chamando a todos de filhos e filhas.

Como cultuar a Jesus e ao mesmo tempo obrigá-lo a passar fome, retirar-lhe o direito de ter até onde deitar a cabeça, fazer dEle uma imagem de Deus analfabeto ? A insensatez e o egoísmo dos homens e das mulheres faz grandes celebrações, cultos monumentais, ergue templos suntuosos na procura da sua glória, no entanto não O vê onde Ele mais está: nos pobres dos pobres.

A Campanha da Fraternidade deste ano nos leva a abrir a janela do coração e ver Jesus no corpo e no sangue dos analfabetos. Numa imensa massa sem instrução que exige ser fermentada em povo.

Perguntará Deus com certeza a cada um de nós e à nação brasileira : - Onde estavas ? Pois eu estava com sede de saber e não me destes de beber desta água...em vez de lápis e papel me deste a escuridão da ignorância e uma cuia para mendigar nas esquinas.

Atendamos pois ao apelo que o Espírito Santo nos faz e que nossa insensatez e nosso egoísmo se transformem em força construtiva para resgatarmos nossos irmãos e irmãs da margem da sociedade. Assim poderemos ver a Deus bem ao nosso lado e certamente o culto Lhe será agradável. Pois como já se sabe, a maior glória de Deus é o homem e a mulher em sua plenitude, de pé, lúcidos e libertos de toda opressão !



SEM TRABALHO POR QUE ...
MARÇO- 1999



Sem trabalho porque não tiveste fé suficiente? Porque não oraste em frente à TV ou porque não bebeste da água milagrosa? Onde está tua carteira de trabalho que não levaste para o padre ou o pastor abençoar?

Sem trabalho porque a fatalidade do terceiro milênio carrega energias negativas e forças cósmicas contra o emprego? Ou porque a bolsa da cochinchina caiu? Será que moras num país paupérrimo assolado por vulcões, terremotos, maremotos e toda sorte de catástrofes naturais? Há guerra civil declarada no teu país?

Sem trabalho porque é vontade de Deus castigar os impenitentes?

Na verdade Deus fez mais que sua parte: nos deu um país enorme, com reservas biológicas que, racionalmente aproveitadas, dariam para vivermos com fartura eternamente, um país sem grandes catástrofes naturais, um povo bom na sua essência, que consegue se alegrar e manter a fé mesmo após 500 anos de exploração, nos deu também uma pluralidade cultural sem precedentes, uma civilização a construir com todos os seus desafios, e nos deu fundamentalmente a liberdade que só os filhos e filhas têm. Nos deu sua Palavra, Jesus Cristo, para em torno dEle e com Ele construirmos nossas vidas. Nos deu ainda sua mãe, Maria, intercessora carinhosa deste país moreno, imagem e semelhança sua, Aparecida.

Sem trabalho por que?

Sem trabalho porque a opção que fizemos, consciente ou inconscientemente, de modelo social, afasta-se completamente da proposta de Jesus. A nossa opção, a da maioria, foi aquela que nos incita a consumir compulsivamente, a acumular sem partilhar, a apostar na disputa egoísta pelos bens de consumo não essenciais. Um modelo que contempla a vaidade, a exibição da aparência em detrimento do ser, onde o humano é substituído pelo lucro. O preço que pagamos é bem alto. E como é ! Medo, violência, grades, perversões, drogas, desemprego, destruição....um modelo importado e inspirado nos demônios do Norte, o mesmo modelo usado para tentar Jesus no início de sua quaresma: ter, poder e prazer.

Vale a reflexão como num programa televisivo: trocaríamos os carros importados por um sistema de transporte coletivo eficiente? Trocaríamos nosso atendimento em hospitais-hotéis de luxo por um sistema de saúde socializado e humanizado? E as escolas? Colocaríamos nossos filhos em escolas públicas otimizadas, lado a lado com o filho da lavadeira, em igual oportunidade para todos? Nossa religião constrói templos de luxo para todos ou há separação de classes nas igrejas?

Sem emprego porque os homens e as mulheres que têm acesso às informações e que são formadores de opinião pública, deixaram-se seduzir pelo luxo dos ricos e ainda introjetaram na mente e nos corações de muitos pobres a sensação de inferioridade, colocando na direção do nosso país, em todos os níveis, pessoas descomprometidas com o modelo de Jesus. Sem emprego porque o nosso pavor irracional de perdermos o pouco que temos nos acovarda a tal ponto, que já não levantamos outra bandeira que não a da nossa própria sobrevivência. Sem emprego porque o próprio Jesus está desempregado, falando no deserto de nossos corações, sem ser ouvido...




UMA QUARESMA, UMA CAMPANHA
JANEIRO/FEVEREIRO - 2001




Vemos um Cristo torturado que caminha para a cruz, no corpo de tantos jovens traz as chagas da tortura. As chagas que uma sociedade injusta lhe impôs. Dentre as feridas estão a fome, a desigualdade social, a falta de perspectiva, as drogas. O Cristo jovem. A Ele oferecem vinho e mirra, ou maconha, ou cocaína, ou crack. Ele recusa. Precisa seguir a missão conscientemente, lúcido, mesmo que o sangue lhe escorra pelos olhos, a visão embotada. Precisa seguir caminhando com a cruz aos ombros. Caindo, levantando, caindo de novo. É jovem o Cristo.

O Reino está perto. Logo ali depois do Calvário. O caminho é penoso. Pedras. Mães chorando. Não chorem por mim, mas pelos seus filhos. Estes que a sociedade da idolatria do lucro transformou em consumidores de drogas. Chorem por eles. Mães de Israel, da praça de Maio, dos Desempregados.

Depois da curva do Gólgota é a montanha da Ressurreição, mas é preciso este caminho. Caminhar é preciso. É preciso enxugar as feridas do Cristo, as lágrimas das mães, consolar a aflição dos pais e oferecer um caminho aos jovens. Abreviar o Calvário, antecipar a Vida, distribuí-la fartamente, democraticamente, plenamente.

O Cristo ressuscitado resplandece, ilumina, conduz. Chama a si as famílias, os pobres, os jovens. Chama a si como chama viva e incandescente a tudo e a todos, pois o sofrimento já sofreu e não há mais nada o que sofrer. A Quaresma Ele já a viveu plenamente, espera-nos pois para a Páscoa, uma Páscoa que preparou com carinho de irmão. É um Cristo jovem. É um Cristo lúcido.




Quaresma - tempo de sacrifício ou tempo de paz?

Janeiro/Fevereiro- 2003



Cheguei em casa na manhã da quarta-feira de cinzas, cansado e feliz, depois de ter desfilado com muito orgulho por meu bloco. Lembrei que a quaresma estava começando e imaginei que sacrifício faria, para melhor preparar-me para a páscoa. Nem cheguei a dormir. O som dos tiros que ressoavam perto de minha janela, penetravam em minha alma, fazendo feridas profundas, fazendo-a sangrar. Era a guerra urbana continuando, depois da trégua para o carnaval.

E o tempo da quaresma chegou, trazendo pânico e desespero para a minha cidade, com incêndios, mortes de inocentes e o pavor estampado em cada rosto, doendo em cada coração.

Do outro lado do mundo, judeus e palestinos continuam matando-se uns aos outros, travando batalhas sangrentas, deixando órfãos de pais, de filhos e de irmãos dois povos sofridos, numa guerra que parece nunca ter fim.

Não muito distante dali, um outro povo sofrido, oprimido pela miséria e por um regime autoritário, vê-se agora vítima de uma outra opressão que destrói suas casas e mata seus filhos: a que advém da ganância e da sede incontida de poder, travestida de salvadora. Não é essa a bandeira desfraldada pelos invasores de terras alheias? Agem como morcegos sedentos que depois de sugar o sangue da vítima, sopram-lhe a ferida para aliviar a dor. Não seria melhor não ter feito a ferida?

Ligo a tv e algo de bom aparece: a Campanha da Fraternidade nos conclamando a valorizar os nossos idosos. Idosos que padecem nas filas dos aposentados em busca do seu magro pagamento ou nas filas do SUS, aguardando um atendimento médico. Idosos que, depositários de nosso passado, deveriam ser a sedimentação de nosso futuro, com sua sabedoria e sua experiência, mas que ainda são tratados como estorvo, algumas vezes jogados por suas famílias em lares para idosos, de onde nunca mais sairão e sequer recebem visita.

O tempo de quaresma para todas essas pessoas há muito começou, bem como o tempo do calvário. Fico me perguntando então, quando, para elas, começará o tempo da ressurreição?

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