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terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Natalício Come Luz

Natalício Come Luz

 


 Natalício nasceu cego, na periferia de Recife, por causa de uma sífilis não tratada de sua mãe. Nasceu no dia de Natal, daí seu nome.

Como toda criança paupérrima não teve acesso à escola e praticamente foi abandonado por sua mãe aos seis anos de idade por causa do novo companheiro dela que não suportava choro de menino, sendo muito violento, ligado ao narcotráfico.

Vagava a criança por entre cães e lixo, dormindo nas ruas, ou melhor, nas calçadas, sob as marquises, ora alimentado por um pedinte ou por outro, até que uma mais esperta, o “alugou” para seu ofício de esmoler, o que lhe trouxe uma melhoria nos ganhos, pois exibia Natalício em toda sua desgraça, nos vários semáforos da cidade.
 
 

Como toda criança, Natalício sonhava. O que mais desejava era comida. O que lhe davam, eram restos dos restos do que mendigavam, e como ele não conhecia bem quais eram os sabores, quando experimentava doce, seus olhos sem luz, se iluminavam por instantes fugidios.

A falsa mãe fazia questão que ele não engordasse e que ficasse praticamente desnudo para angariar mais dinheiro nas esmolas. Era uma criança envolta em panos, farrapos melhor dizendo.

Natalício, como todo cego e todo poeta, pode ver na escuridão, como já disse Chico, e aproveitando o compositor, certa vez a criança ouviu tocando no rádio a música Brejo da Cruz, onde as crianças se alimentavam de luz. Natalício começou a aperrear sua falsa mãe para saber que gosto tinha a luz e se ele poderia experimentar também.

Muitas e muitas vezes eles comeram sopa, de madrugada, que grupos caridosos distribuíam nas ruas do centro.

-Essa é luz? Perguntava Natalício.

-Não. Fica calado e come, menino buchudo! – respondia a mulher. Isso é água com sal. Água de mar. Natalício sentia gosto de lágrima.

Natalício revirava os olhos e triste se fechava ainda mais no seu mundo sombrio. Quando estava muito escuro mesmo, a mulher pedia para ele ir orientando o caminho.

O que mais Natalício queria era doce.

Estava chegando o natal, e como acontece todo ano, muitas pessoas compram presentes e distribuem junto com a sopa. É uma festa. Pena que Natalício não podia ver, mas gostava de ouvir os apitos, os piões rodando, as bolas batendo no chão.

Era dura a vida para ele, muito dura. Muitas vezes levou palmadas para chorar, para atrair a atenção dos motoristas ou pedestres e causar dó nas pessoas. Quando lhe perguntavam o que sentia, a mulher dizia que estava doente sem remédio e sem comida.

Esse Natal não seria diferente dos outros. Apenas um detalhe. Alguém deu-lhe um pedaço de chocolate, mordido já, a bem da verdade, mas um pedaço de chocolate! Natalício jamais havia experimentado tal sensação. Imediatamente ligou o sabor à luz, sim, havia experimentado o sabor da luz! E que sabor...

Como ninguém nunca sente desejo por algo que nunca tenha experimentado ou visto, nosso menino passou a pedir por chocolate, ou melhor, por luz. Inicialmente baixinho e depois, como não era atendido, gritava.

-Quero luz, quero luz!

A princípio a mulher achou bom, porque quem passava pensava que o menino pedia a visão e se compadeciam mais ainda dele, aumentando a esmola. O problema é que quando não estava ninguém por perto ele continuava a gritar: - Quero luz! Estou com fome de luz!

Em vez de comprar um chocolate para ele a mulher batia cada vez mais forte. Quanto mais ele pedia luz mais apanhava, de tal maneira que algumas pessoas vendo os arranhões e os hematomas pelo corpo, perguntavam o que estava acontecendo e ela dizia que por ele ser cego, caía muito.

Na véspera do natal, Natalício conseguiu fugir, nem que por algumas horas, quando a mulher havia tomado uns copos de aguardente. Tropeçando, se arrastando, perguntando, esgueirou-se por dentro de uma pequena capela onde se falava do nascimento do menino Jesus, naquela parte da estrela. Natalício ouviu atento. O pregador falava que a estrela de Belém deixava um caminho de luz para orientar os magos e iluminava a noite e parou bem em cima da manjedoura com muita luz, uma intensa luz que clareou toda a escuridão do mundo. Natalício imaginava uma imensa quantidade de chocolate, e se ele acaso houvesse visto o mar imaginaria um mar de chocolate.

Natalício desejou então, de todo coração, estar presente naquela noite na gruta de Belém. Ah! Como ficaria feliz, poder experimentar toda a luz que sentisse vontade. Saciar-se de luz. Quanto a Jesus ele tinha vontade de conhecer também, embora achasse que Ele não era muito bom, pois a mulher que lhe explorava usava muito o nome dele para pedir e ainda dizia que Ele é que pagaria àquelas pessoas. Natalício não entendia, mas que esse Jesus devia ser muito feliz, isso sim, pois tinha uma estrela de luz só para ele. Jamais passaria fome.

Quanto mais Natalício ouvia a pregação mais se imaginava naquela cena. Já estava bem ali perto do menino, e imaginou pedindo um pouco de luz a Maria, e esta de repente, se parecia com sua mãe, a idealizada na escuridão dos seus olhos, mas na claridade de seu coração. Sentiu-se protegido e confortável e saciado, pela primeira vez na vida, nem que fosse na imaginação, pois como dissemos, os poetas e os cegos podem ver na escuridão.

Ali adormeceu Natalício, entre a pregação, o perfume do incenso e o ouro da capela, envolto em panos remendados. Ninguém notou.

Enquanto isso, a mulher deu em si, após acordar da bebedeira, e saiu a procurar desvairada por Natalício, seu ganha pão. E foi nas esquinas, nos botecos, nas sarjetas, sobre os papelões dos moradores das calçadas e das ruas, e nada. Nada de Natalício. Jamais pensaria em procurar numa capela. Mesmo assim, perguntando e perguntando, finalmente descobriu que ele havia entrado sem querer naquela igreja. A celebração já havia acabado e estavam fechando as portas, pois as pessoas iam para sua casa para a ceia do Natal... Ela tentou entrar, mas não havia lugar para ela. Perguntou ao porteiro pela criança, este disse não ter visto nenhuma criança cega, embora houvesse muitos mendigos. Depois de muito implorar, o homem permitiu que ela olhasse dentro, por alguns instantes. Nada.

A mulher não percebeu, mas no chão do cantinho da capela, uma poça de luz com uns panos dobrados, brilhava de maneira especial, com um leve odor de chocolate.

 

Assuero Gomes.

assuerogomes@terra.com.br

 

 

domingo, 1 de dezembro de 2013

A mulher que engolia espadas


 
 
 
 
 
 
A mulher que engolia espadas

 

Mirabel estava ali deitada, contorcida no sofá. Era a terceira namorada da sua vida. Conhecera há uns cinco dias, depois de uma farra com amigos, que acabou desembocando num circo. Um pequeno circo no subúrbio carioca.

Olhou a trapezista, olhou uma palhacinha meio anã, morena de coxas grossas, olhou a moça da bilheteria que depois foi vender bombons durante o espetáculo. Nada o atraiu. Um leão magro e sonolento, indiferente ao domador de cartola puída, enfastiava a plateia.

O álcool já o deixava sonolento e um tanto quanto nauseabundo. “Atenção senhores e senhoras, essa maravilhosa artista que veio das ilhas do Caribe, Maribel, a mulher que engole espadas!” Anunciava o dono do circo, tentando animar.

Aí ela entrou. Fulgurante. Um biquíni vestido sobre uma meia-calça. Brilhava. Uma espada do tamanho do braço dele, e ela impávida engolia o colosso de gládio, sem nem tossir. Sem uma careta sequer. Sem pestanejos ou desvios de olhares.

E não era só isso que a moça fazia. Logo em seguida pegou uma garrafa, provavelmente de rum, para compor a personagem, e entornando o precioso líquido borrifou sobre uma chama flamejante, acendendo os olhos dele e de muita gente mais. Mirabel era realmente uma grande estrela.

Enrolou-se num mastro como uma serpente, depois serpenteou-se numa corda descendente como uma bailarina dos ares, enroscou-se no trapézio, entrou nas argolas e tomando de supetão o chicote cansado do domador, ainda brincou com o leão.

Era a glória em forma de mulher!

Agora mirava Mirabel encolhida e cansada no sofá de seu minúsculo apartamento. Que noite fora aquela do encontro! Foram cinco dias seguidos de experiências sensoriais que mudariam a vida de qualquer burocrata, contabilista ou museólogo. Logo, logo, seu pai e sua mãe chegariam para conhecer a nova pretensa nora. Estava apreensivo. Seus pais não eram conservadores, mas quando se tratava de conservar a cria, as mães viram leoas como que enjauladas.

Trimm! Trimmmm! Trimmmm!

“Mirabel, acorda meu bem, acorda, minha mãe ta aí na porta. Acorda” E Mirabel nada. O pior, estava há uns cinco dias sem tomar banho, nem depilar as axilas, cheirando a rum. Nem se mexia.

Trimmm! Trimmmmmmmmmmmmmmmmmmmm! “Meu filho! Abra aqui!” Troc. A maçaneta estava emperrada. “Tudo bem mãe? Pai?”

Mirabel fez menção de mover-se do lugar, mesmo dormindo. A pretensa sogra e o pretenso sogro não esconderam sua admiração espástica. Estática. Estética. “Mirabel, Mirabel, minha mãe chegou!” Abriu os olhos sem saber se era dia ou noite. Sexto andar. Lá fora a lua e estrelas salpicadas como nas lonas furadas.

“O que você faz?” “Muitas coisas, coisas que a senhora nem imagina!”

A janela estava aberta. Sexto andar. Uma última aptidão da moça que engolia espadas, essa nem ele, o amado, conhecia.

Como uma mulher-bala, sem canhão sem nada, Mirabel disparou-se pela janela. Talvez a lua, talvez a lona, certamente estrela.

Assuero Gomes