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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Celebrar (a Eucaristia) com arte, por Reginaldo Veloso



Igreja das Fronteiras



Celebrar com arte: qual é mesmo questão?...
                                                                                                                             Reginaldo Veloso
I – A arte da vida e a arte do louvor


<<        Cantai ao Senhor Deus um canto novo, e o seu louvor na assembléia dos fiéis (Sl 149,1).
            Somos convidados a cantar um canto novo ao Senhor. O homem novo conhece o canto novo. O canto é uma manifestação de alegria e, se examinarmos bem, é uma expressão de amor. Quem, portanto, aprendeu a amar a vida nova, aprendeu também a cantar o canto novo. É, pois, pelo canto novo que devemos reconhecer o que é a vida nova. Tudo isso pertence ao mesmo Reino: o homem novo, o canto novo, a nova aliança.
                                    (... ...)
            Ó irmãos, ó filhos, ó novos rebentos da Igreja católica, o geração santa e celestial, que renascestes em Cristo para uma vida nova! Ouvi-me, ou melhor, ouvi através do meu convite: Cantai ao Senhor Deus um canto novo. Já estou cantando, respondes, cantas bem, estou escutando. Mas oxalá a tua vida não dê testemunho contra tuas palavras.
Cantai com a voz, cantai com o coração, cantai com os lábios, cantai com a vida: Cantai ao Senhor Deus um canto novo. Que louvores? Seu louvor na assembléia dos fiéis. O louvor de quem canta é o próprio cantor.
Quereis cantar louvores a Deus? Sede vós mesmos o canto que ides cantar. Vós sereis o seu maior louvor, se viverdes santamente. >> AGOSTINHO, Bispo de Hipona, sec. V, sermo 34, in LH II, p.642s.


“Celebrar com arte” me remete, antes de tudo, a celebrar “como” arte... E toda arte autêntica brota do existencial. Não por nada me ocorreu imediatamente, ao receber o convite para este encontro, a admoestação de Agostinho, primeiro teólogo do canto litúrgico, que acabamos de ler.
Em seguida, indo um pouco mais atrás, encontro-me no “caminho” do Samaritano (Lc 10,25-37). Se dele me esquivar, não poderei entender o que seja o louvor autêntico, não chegarei à fonte mesma de onde brota a arte de bem louvar. Parece que, de cara, Jesus, o único Mestre, nos alerta e vacina contra toda verticalidade que suba para o alto sem ter passado pela horizontalidade do cotidiano, especialmente, pelo caminho dos assaltados e despossuídos de toda sorte... contra todo artifício que não procede do existencial... contra todo “faz de conta”.
Infelizmente, desde a catequese da 1ª Eucaristia, passando pela nossa formação litúrgica nos seminários e outras casas ou oportunidades de formação, que, em geral, parece se queimar esta etapa primeira e fundamental. Quantas páginas os manuais de Liturgia dedicam a esta questão primeira e essencial?... Até liturgistas renomados passam por esta questão sem perceber o seu verdadeiro alcance[1].
Da Assembleia litúrgica, celebrante principal, aos que a ela servem, animando o canto, proclamando as leituras, presidindo-a ou exercendo qualquer outro ministério, se falta essa vivência de base que é uma vida vivida na solidariedade, em que o “fazei isto em minha memória” (1 Co 11,24-25)  coincide com o mandato do “lava-pés” (Jo 13,4-17; cf. 1Co 11,17-22), e a celebração do Memorial se consubstancia da prática efetiva do serviço humilde aos irmãos e irmãs, se falta isso, insisto, tudo mais soa falso e a arte de celebrar é apenas um artifício, que pode contentar a quem gosta de enganar-se, mas, com certeza, não engana a Deus. É disso que se trata, quando alguém, profeticamente, denunciou a religião como “ópio do povo”. Infelizmente, em todos os setores da vida em sociedade, parece se dar bem quem consegue exercer bem a “arte de enganar”. E é significativo que este nosso encontro aconteça às vésperas de mais uma Copa do Mundo e de mais uma Eleição.
A pastoral litúrgica que culmina no “celebrar com arte”, pelo visto, supõe, antes de tudo e impreterivelmente, uma pastoral de evangelização, onde todos e todas, a começar pelos evangelizadores e evangelizadoras, aprendem, no cotidiano, compartilhado nas rodas de revisão de vida, na dinâmica do “ver – julgar – agir”, a arte das artes, e capricham nela, a arte do “Bem Viver”, o jeito “samaritano” de caminhar pela vida, a prática cada vez mais exigente e abrangente da solidariedade em cada ambiente de vida, priorizando os que mais precisam, saindo de suas “zonas de conforto” para ir às “fronteiras existenciais”, como nos incita Papa Francisco, abraçando, na medida na própria consciência, as grandes causas da humanidade, saindo às ruas e correndo riscos, se preciso.
Todo cristão consciente precisa caminhar com esta clareza e percepção de que, o primeiro ato de adoração consiste em compadecer-se e debruçar-se sobre todos aqueles e aquelas que jazem pela estrada, a ponto de morrer, fisicamente, moralmente, espiritualmente, e são legiões. Sem isso, nossa arte de celebrar será, no mínimo, demagogia, e o Mestre, muito antes de Marx, a denunciará como a mais perversa expressão de “hipocrisia” (Mt 7,15-23; cf. Mt 23,13-36; Jo 10,7-15 e 1Co 13,1).
A esta altura de nossa reflexão, vale a pena deixar repercutir o evangelho de domingo passado, 5º Domingo do Tempo Comum (melhor se chamaria “Tempo do Discipulado e da Missão”), desfecho luminoso das Bem-Aventuranças: “Vós sois o sal da terra. Ora, se o sal perde o seu sabor, com que se salgará? Não servirá para mais nada, senão para ser jogado fora e pisado pelas pessoas. Vós sois a luz do mundo. (...) Assim também brilhe a vossa luz diante das pessoas, para que vejam as vossas boas obras e louvem o vosso Pai que está nos céus” (Mt 1 5,13-16). É a lógica mesma do “viver” como fonte primeira do “louvar”.
Preocupados com o “celebrar com arte”, com a arte de celebrar, não por mera coincidência, mas, providencialmente, às vésperas de mais uma Quaresma, perguntemo-nos:
1.       Nossa pastoral litúrgica se faz com devida clareza e exigência sobre esse pressuposto: liturgia, antes de ser uma prática ritual, antes de ser celebração, é uma prática existencial, é a vida cotidiana, pessoal e comunitária,  vivida segundo os valores do Reino de Deus anunciado por Jesus?...
2.       Onde começa a arte de celebrar?...
3.       O que precisamos exigir, antes de tudo, de nós mesmos e de toda pessoa que assume um ministério na celebração, sobretudo de quem preside, para que nossas celebrações sejam uma autêntica obra de arte?...
4.       Que pensar da celebração eucarística, culminância da vida eclesial, reduzida à banalidade de celebrações feitas a qualquer momento, de qualquer jeito e a qualquer pretexto, aparentemente, sem qualquer vínculo comunitário entre as pessoas que celebram, e sem qualquer compromisso pessoal e comunitário com Bem Comum?...






[1] No Seminário Nacional organizado pela CNBB para comemorar os 50 anos da Constituição sobre a Sagrada Liturgia (Iatici, fevereiro de 2012), aparteado sobre esta questão, o palestrante convidado a ela se referiu em seus comentários, como se se tratasse apenas de uma forma, entre outras, de glorificar a Deus, ao lado, por exemplo, da “Liturgia”. É a perspectiva ritualista de sempre o que prevalece.

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