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sábado, 29 de novembro de 2014

Vem Senhor!







DO IRMÃO PADRE JOÃO PUBBEN 

Irmãs/Irmãos,

Paz e Alegria!

Há 45 anos, o tempo do Advento que nos encaminha para o Natal, também começou no dia 30 de novembro.
Envio – com amizade – “VEM, SENHOR”, que Dom Helder confiou ao papel em sua vigília de 29/30.11.1969.
Desejo para todas e todos uma valiosa preparação para celebrar a Encarnação de Jesus, neste ano, JP

VEM, SENHOR !

Não sorrias,
dizendo
que já estás conosco.
Há milhões que não Te conhecem.
E de que basta conhecer-Te,
de que adianta tua vinda,
se para os teus
a vida continua igual?...
Converte-nos!
Revolve-nos!
Que a tua mensagem
se torne carne de nossa carne,
sangue de nosso sangue,
razão de ser de nossa vida.
Que ela nos arranque
do comodismo,
da boa consciência!
Seja exigente,
incômoda,
pois só assim
nos trará a paz profunda,
a paz diferente,
a TUA paz!...

Recife, 29/30.11.1969


Hélder Câmara

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

A Cruz e o ninho


                                                   

A cruz e o ninho


Na estrada havia uma cruz. Havia uma cruz na estrada. Ao longe parecia que ao encontro das margens, onde as paralelas se encontram, ali estava a cruz. Ela parecia o centro do caminho, mas não era. Quanto mais caminhávamos a cruz parecia maior. Percebíamos que era fincada ao lado da estrada. De pedra. Uma cruz de pedra ao lado do caminho.

Caminho de pedra e cruz de pedra, e pedra de caminho e cruz.

Não era o fim da estrada, apenas estrada. Não era no início nem no meio nem no fim. Era estrada e cruz. Lugar seco aquele. Xique-xique, graveto, avelós para quebrar a monotonia do cinza e do marrom.
A cruz estava lá. Imóvel. A estrada caminhava e nós entre a estrada e a cruz. As nuvens caminhavam, a sede não. Era eterna como a cruz de pedra. A sede é dura e eterna como a pedra. Uma carcaça de um boi morto velava a cruz. O sol como uma vela colossal e quente descarnava a pele e a carne de quem parava. Fervia o chão, fervia os pés, fervia a língua e a garganta seca como a morte. Cegava.
A cruz de pedra brigava com o caminho dos caminhantes. Tentava-os. Morrer e descansar agarrados à cruz ou caminhar e morrer caminhando. Morrer é fácil, viver é difícil Diadorim.

Entre os braços no canto a cruz guardava uma surpresa. Era delírio, visagem ou canto mesmo?
Um ninho.  Um ninho descansando no braço esquerdo da cruz. Um ninho feito uma coroa de espinhos. De uma coroa de espinhos. Simplesmente um ninho perdido numa margem de uma estrada sobre uma cruz. Dentro do ninho um ovo. Dentro do ovo uma esperança. Na esperança um depois.
Paramos incógnitos. A paisagem nos consumia e derretia e nós consumíamos a paisagem, a única coisa que se podia beber era a paisagem. Ali até os sonhos secam. Ali onde se começa a ter saudade das saudades que passaram.

Estávamos nós incorporados para sempre numa estrada de um caminho, olhando uma cruz de pedra com um ninho pousado sobre si e dentro do ninho um ovo. Tudo isso incorporado numa paisagem imutável, um sertão de paisagem.

Havia um ovo, um ovo dentro de um ninho, um ninho sobre uma cruz de pedra, uma cruz de pedra incrustada na margem da estrada. Parados ali havia três pessoas olhando para o ninho. Esperando o pássaro brotar.


Assuero Gomes 

terça-feira, 18 de novembro de 2014

De águas...




De águas...





Tão suave e espelhal




Como uma passagem para o passado....


Como uma fonte no meio do jardim




Como plantas no aquário do céu.


sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Pandora e Maria

Pandora e a festa dos desesperados

Assuero Gomes
Médico e Escritor

Eu, Assuero, isolado na ilha do planalto, tive uma visão, que a princípio me perturbou muito, mas um vento suave, como uma brisa, me soprou um alento e disse que não me perturbasse o coração, pois tudo haveria de passar.
Uma mulher, bela, sedutora, voluptuosa, de grandes seios fartos, de onde escorria mel e do outro, leite, sentada numa magnífica caixa, trabalhada em filigranas de ouro sobre marfim e ébano. 

No centro de uma praça uma multidão acorria à mulher. Queriam beber do leite e do mel de graça. Eram centenas de centenas. Gente de todo tipo. Mendigos, aleijados, míopes, caolhos, prostitutas, dançarinos, glutões, beberrões, palhaços, fugitivos, empresários, endividados, domésticos, donas de casa, adolescentes, estudantes, domadores circenses, mambembes, doentes, peregrinos, incautos, descuidistas, banqueiros, funcionários públicos, padioleiros, amantes, e muita gente mais.


Como ondas, avançavam para a mulher, que lasciva, vestida de escarlate e lábios carmim, acenava para a multidão indócil e aflita, atrás de leite e mel de graça.
Aumentando o frenesi a mulher abria a caixa e de lá tirava notas graúdas de dinheiro e aspergia sobre a população, dissolvendo o pouco de povo que existia e fomentando a massa. Deliravam todos numa orgia sufocante. Da caixa a mulher passou a retirar e espalhar palavras, muitas palavras. Palavras de discórdia e disputa. Mentiras e calúnias. Molhava as palavras em um pouco de leite e mel para torná-las mais palatáveis, mais saborosas, outras vezes as colava nas cédulas.
Era uma caixa sem fundo. Quanto mais ela tirava as palavras de lá, mais surgiam. Sem fim.
A multidão começou a se olhar de maneira estranha. Pai desconfiando de filho, amigos de longos anos se estranharam, namorados se agrediram, os mais ricos e os mais pobres se engalfinhando no chão, negros contra índios e mulatos contra brancos.
O ódio foi se alimentando do próprio ódio. Lutas e ferimentos sangravam e molhavam o chão. Impassível a mulher exibia um sorriso discreto. Como um carnaval às avessas, as pessoas já desfiguradas na sua agonia, aflitas não sabiam para onde ir, presas dentro da própria praça. Alguns tentavam recolocar as palavras na caixa mas era impossível pois já tinham sido espalhadas e seu efeito devastador se fazia presente de forma irreversível.
Pedi então ao vento que me acordasse dessa visão tenebrosa. Pedi ao Vento...



Depois da festa dos desesperados...

Ao final da festa de Pandora, onde a mesma havia distribuído leite e mel de graça, junto com algumas cédulas de dinheiro, e espalhado palavras de discórdia sobre a multidão dos desesperados, que freneticamente se atracou entre si, restou o caos.
Irmãos contra irmãos, pais contra filhos, negros contra mestiços, brancos contra índios, sulistas contra nordestinos, homossexuais contra héteros, jovens contra idosos, ricos contra pobres, católicos contra evangélicos, todos contra todos e contra si, numa diabólica cisão fratricida, um pentecostes ao inverso, um reino de Babel.
Restaram os sobreviventes. Estrupiados, rotos, um trapo de nação em frangalhos. Mais pobres que antes, sujeitos às esmolas prisioneiras. Almas e corpos machucados. Ali na praça que virou uma arena, ao centro, Pandora ria despudorada, sentada sobre sua caixa, agora vazia.
Do outro lado da praça, numa campina, uma senhora observa serena, com olhos de mãe. Veste-se de maneira digna e singela. Não fala, não gesticula, não se agita. Comovida, espera pelos primeiros feridos. Os famintos, os iludidos, os doídos, que agora chegam. As chagas sociais expostas, as promessas vãs, não cumpridas, as decepções que pesam na cruz de uma vida difícil. Esses são os desesperados.
A senhora observa as marcas de sangue no caminho. Acolhe um a um. Seus gestos agora são calmos, fraternos, maternais. Escuta e cuida. Alivia e consola. Nada promete apenas trabalha, o trabalho dos inocentes que têm as mãos limpas e podem tocar nas chagas dos pobres.
O tempo serena. O balburdio da festa aos poucos vai se tornando silêncio. Uma sinfonia de alvorecer vai surgindo. O vento retorna seu sopro de vida e alivia.
Logo alguns vão chegando e ajudando. Estão sofridos também, mas resistiram e agora ajudam. A harmonia perdida  vai se reincorporando ao ambiente, os suspiros, os gemidos de dor são diluídos na alegria de servir e na esperança. A massa disforme pelo sofrimento vai aos poucos se formando em povo.

A senhora então começa a falar palavras de alimento, de medicamento, de trabalho digno, de escola, de carinho, de respeito, de união, de partilha, de fraternidade, de compromisso, de ajuda, e asperge aqueles desesperados com uma imensa chuva de misericórdia. É como uma chuva que desce do céu, do coração de Deus.
Ali, misturado aos que ajudam, seu filho se mantém incógnito, como se fosse um, um com os outros, um em todos. O desespero vai dando lugar à esperança. Um novo tecido vai se refazendo, como um tecido novo que apaga os remendos e se refaz sob a linha de sutura do serviço e da justiça. Como um manto inconsútil. Um manto que abriga e agasalha os despossuídos, um manto com que se faz a bandeira de uma nação. Um manto no qual se abriga os filhos, um manto no qual se cobre a tenda da humanidade e se come o pão. O pão da partilha.
Ao final nada restou da festa de Pandora, nem uma tênue lembrança, nem uma saudade sequer.
Reconstruir na fraternidade sob o manto da misericórdia, recolher o disperso, cuidar de um povo, esse é o serviço da Senhora e de seu filho muito amado. Rogai por nós, do Brasil.

Assuero Gomes








quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Depois da festa

Depois da festa...

Depois que a festa acabou, assim como a banda de Chico Buarque, tudo tomou seu lugar. A não ser pela ressaca, os pobres continuaram a ser explorados, os mesmos ladrões de sempre a roubar, a cantora sem voz tentava explicar a conta, uma vez que a luz não é de graça, nem a banda, nem o som.
Rastros da noite dos desesperados ficaram pelo chão. Os corações mais pesados, a alma mais angustiada, o vizinho mais truculento.
O dia a dia consumiu em poucas horas aquele sonho de poder e de melhoria. Tudo como dantes no reino de Abrantes, como dizia um dito popular antigo.

No posto de saúde as atendentes de enfermagem recebiam os feridos das ambulâncias precárias, dos maqueiros sonolentos. O posto à deriva faltando tudo. Por cima do ambulatório, na sala de atendimento, uma imagem de Maria parecia acolher aqueles filhos, mais uma vez. Silenciosa e meiga, como se visse em cada um seu próprio filho.

Assuero Gomes
assuerogomes@terra.com.br